Sente: vou lhe contar uma história
Muito real, ainda que assombrosa,
Sobre uma pessoa que deu o seu melhor
Mesmo quando julgaram-na como a pior.
Diziam que não prestava para nada
Que sua existência era uma piada
Que não tinha o menor talento
Que tocar era pura perda de tempo
Que tentasse uma carreira "de verdade"
Antes que fosse demasiado tarde.
Fora isso, o resto sempre foi uma bosta
Em casa, na rua ou na escola.
Somente na música encontrava algum alento,
Ainda que seu progresso fosse muito lento.
Houve uma época tão, mas tão fodida
Que cogitou a dar um fim à própria vida.
Família zoada, sem amigos, sem futuro,
Sentindo que vivia a esmo no mundo.
Algo a compelia a insistir, todavia.
Exatamente o quê, não sabia.
Somente sentia que a resposta estava na paleta,
Na guitarra, nas caixas e na pedaleira.
Buscava a todo custo manter seu objetivo,
Mesmo sem ninguém para lhe dar incentivo.
A coisa toda piorou até o ponto
Em que chegou a duvidar de seu próprio sonho
Ou da validade de sua estadia
Em um mundo/sociedade que lhe destruía.
Com o âmago mais que despedaçado,
Montou todo o equipamento no telhado
Decidindo externar tudo o que retera até então
Em uma derradeira e tresloucada criação.
Foi numa madrugada, a mais soturna,
Que seria composta aquela música.
A data? Em meu íntimo relembro:
A última noite de um deprimente Dezembro
Não existia letra, somente melodia
Oriunda da guitarra em profunda epifania.
O dedilhar melancólico ganhou a noite
Nota após nota, cada qual feito açoite
Auto-infligido à sua própria alma
Para que a dor saísse e inspirasse de volta.
O ar ficou carregado de tristeza
Conforme a canção adquiria mais e mais beleza;
A intensidade sonora foi se elevando
Memórias e lágrimas se acumulando
Nos olhos cujas íris estavam opacas
Devido às omissões, perdas, calúnias e falhas...
Quão louca e ferozmente tocava
Exprimindo desespero pela sofrível jornada!
Os braços já davam sinais de cansaço:
Tremiam, doíam, estavam um bagaço.
O suor pingava pelo rosto aflito;
Estava difícil para manter o ritmo.
Os dedos começaram a sangrar,
Não mais que as feridas no coração a carregar.
Continuou, mais e mais veloz,
O soluçar fazendo as vezes da voz.
Esfolamento profundo, excruciante
Como o desprezo e a solidão incessantes.
Como cada uma das zombarias.
Como todo o vazio, dia após dia...!
Todo aquela extensão de sentimentos,
Sobrepondo-se ao rigor dos ferimentos:
Alma depositada de modo pleno
Na música de acordes sangrentos .
O choro da guitarra ecoava longínquo,
Instilando pesar a cada ser o ouvindo.
Sentia que algo a mais estava para acontecer
Na medida em que seus tendões pareciam romper.
"PARA! NÃO DÁ MAIS!", o corpo implorava.
Ignorava, se machucava... Tocava, tocava, TOCAVA!
Então, quando o solo atingiu seu apogeu,
Algo sem quaisquer precedentes ocorreu:
Música e artista ultrapassaram os limites
Do que cogitamos natural e do que existe
E naquele instante de angústia máxima,
Cada ser vivo a seu modo expeliu uma lágrima
Tocados por uma lamúria coletiva
Inexplicável, insuportável, desmedida.
O término da canção foi abrupto
Pois quem a tocava sofrera um mal súbito:
Funesto e justificável pagamento
Por tamanha performance sob o firmamento...
Dessa parte não tenho certeza, reconheço.
Mas gosto dela, então conto assim mesmo:
Dizem que na medida em que tudo findava
E a Morte sua alma lentamente levava,
Para seu orgulho acabou descobrindo
Que, ao contrário do resto, Ela estava sorrindo...
Acredite se quiser: esta é a história verdadeira
Por trás da Noite da Canção Derradeira.
E se não lhe servir de prova do evento
Junto com essa foto do local do sepultamento,
Ali estão a guitarra com sangue e o resto do equipamento.
Vamos, toque! Dê tudo de si, sem refreamento!
Se tiver a vontade e o comprometimento,
Quem sabe você também, por um momento...?