A Baía dos Cães Mortos
Holzwarth
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 11/08/17 14:51
Editado: 19/08/19 22:10
Gênero(s): Terror ou Horror
Avaliação: 9.83
Tempo de Leitura: 4min a 5min
Apreciadores: 11
Comentários: 6
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Palavras: 661
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Notas de Cabeçalho

um texto mais pessoal, feito após ouvir muito death metal falando sobre frio

Capítulo Único A Baía dos Cães Mortos

Na noite escura, uiva o lobo.

O vento gelado castiga nossos corpos fumegantes.

As línguas pendem das bocas, que expelem nuvens de vapor quente, condensado, que sobe e sobe, para muito além do céu, para muito além da noite escura. A noite é escura assim como está frio; está frio e nossos corpos fumegam, está frio e nossas pernas morrem.

O gelo cobre minhas patas machucadas, gruda em minhas unhas, gela meus olhos. Olhos tão azuis como a noite, tão azuis como o gelo, tão azuis como a morte.

Meus irmãos ofegam, arfam, sopram e fungam; choram e latem. Suas pernas morrem e o gelo cobre nossas patas machucadas. Ouço seus clamores, seus guinchos de súplica; olho em seus olhos e eles olham nos meus. Olhos azuis como o gelo que cobre nossas patas, olhos azuis como a morte.

A baía avança sobre nossas patas, sobre nossas pernas que morrem e queimam, sobre nossos corpos atados a cordas que esticam e que puxam. Em nossos ouvidos, uiva o vento. Na noite escura, uiva o lobo.

Doze latidos latem em coro; doze línguas pendem das bocas abertas, que latem e ganem e clamam. Os corpos fumegam na noite gelada, fumegam sobre a baía congelada, fumegam contra o vento cortante. Doze almas clamam pelo perdão, clamam a misericórdia do frio.

O gelo cobre nossas patas machucadas, que correm e morrem, que bambeiam e tropeçam. Duas dúzias de horas a fio para doze corpos cansados, fumegantes e cobertos de gelo, clamando pela misericórdia do frio.

Mas o frio não tem misericórdia.

Seus olhos olham os meus, olham o líder que os conduz pela baía; meus dedos queimam e sangram, e o gelo cobre o sangue de minhas patas. Seus choros choram e imploram, seus latidos pedem pela minha misericórdia.

Meu instinto treme; sacoleja o tutano de meus ossos exaustos, chacoalha meus músculos mortos. Num incrível lapso de energia, um espasmo sacode meu corpo, guiando-me pela baía, conduzindo-nos pelo gelo.

A grande baía, imersa na noite, lança-se diante de meus olhos cansados cobertos de gelo, gelo que cobre minhas patas sangrentas e machucadas. A gare da morte lança-se diante de meus olhos azuis, numa camada fina, frágil, mortal. Os ganidos clamam e os latidos imploram; seu instinto de matilha quer frear, e a inércia suicida se recusa a parar de correr.

Conduzo-os, guio-os, levo-os em silêncio, ouvindo suas súplicas que morrem no frio, ouvindo os passos e tropeços que seguem o Líder, quem lhes dará o golpe de misericórdia.

O gelo trinca sobre minhas patas machucadas; as cordas puxam, repuxam e esticam. Num frenesim insano, meus irmãos ganem, gritam, latem, enquanto o gelo trinca, quebra e se separa. As cordas puxam, enlaçam-se em minhas patas e me atiram ao chão; o gelo voa em meus olhos, espirra, estilhaça. O primeiro ganido de horror trinca a noite; o gelo se move sobre nossas patas, escorrega, desliza e se parte.

A grande geleira brame, ergue-se acima de minha cabeça com uma sombra; patas atingem meus olhos, meu focinho, meu corpo. As unhas espirram o gelo e a água; na noite escura, não enxergo mais nada.

Caído no chão, as patas pisam-me o corpo, as cordas puxam, sufocam e enforcam nossos pescoços, nossos corpos embebidos em pavor. A onda ruge; o trenó estala, tomba, fazendo voar o pequeno corpo compacto que lá se sentava. Os vultos lançam-se em minha visão; ganem e choram, gritam e latem. O gelo cobre meus olhos cegos.

A onda troveja, levanta e desaba; as placas descem e sobem. A baía trincada se partiu em mil pedaços, lançando gelo e água. O gelo e a água envolvem-me o corpo torcido, amarrado e enforcado.

Inerte, meus olhos acompanham os latidos de meus irmãos. Enrolados, sufocados, congelados; o gelo endurece seus corpos, que boiam na baía, guinchando por socorro, ganindo em desespero.

O frio me abraça, aperta-me o corpo, faz-me fechar os olhos. O gelo cobre meu corpo morto, que boia na baía dos cães mortos.

❖❖❖
Notas de Rodapé

são doze cães, o narrador é o décimo terceiro, mas ele não se considera um cão, tanto que não se coloca na contagem; por quê?

Apreciadores (11)
Comentários (6)
Comentário Favorito
Postado 13/08/17 14:08 Editado 13/08/17 14:11

Sr. Holzwarth, essa é minha primeira obra de sua autoria que tenho o imenso e insano prazer em ler!

Antes de mais nada, preciso dizer que o título foi genial, bonito, e angustiantemente triste! Ou seja, eu amei!

Agora, sobre o conto em si...

Moço... que obra mais maravilhosa!!!!

As palavras certas fizeram as frases ficarem completamente fascinantes!!!

Permita-me citar algumas dessas frases:

"Olhos tão azuis como a noite, tão azuis como o gelo, tão azuis como a morte." - frase linda e inebriante!

"A baía avança sobre nossas patas, sobre nossas pernas que morrem e queimam" e "O gelo cobre nossas patas machucadas, que correm e morrem"- essas palavras são hediondas e execráveis... lindas para serem lidas, horríveis para serem sentidas...

"Doze almas clamam pelo perdão, clamam a misericórdia do frio" - o frio não tem misericórdia de ninguém... O frio é abominável e cruel...

"matilha quer frear, e a inércia suicida se recusa a parar de correr" - palavras tão bonitas, para uma cena tão triste...

"A baía trincada se partiu em mil pedaços, lançando gelo e água. O gelo e a água envolvem-me o corpo torcido, amarrado e enforcado" - esse trecho me deixou com os olhos marejados de água... que coisa mais nefasta foi descrita aqui...

"Inerte, meus olhos acompanham os latidos de meus irmãos. Enrolados, sufocados, congelados; o gelo endurece seus corpos, que boiam na baía, guinchando por socorro, ganindo em desespero" - como o senhor é capaz de escrever com tamanha maestria?

"O gelo cobre meu corpo morto, que boia na baía dos cães mortos." - o texto foi fechado pela frase mais marcante e tocante de todas... triste... visceral... maravilhosa!!

Cada uma dessas frases citadas e comentadas, foram lindas, perfeitas, magníficas!

Senti um amor profundo por esse seu conto!

Ao lê-lo, lembrei-me de dois livros que já li: "O Chamado da Floresta" e "Caninos Brancos", ambos de Jack London. O primeiro trata de um cão doméstico foi que traficado para o Alasca, e sofre horrores, até ser tomado pelos seus instintos ancestrais de selvageria! O segundo trata de um lobo que passa por muitas coisas horríveis também, até ser domesticada por humanos... Ambos os livros são de uma violência extrema, cenas de partir o coração... Coisas hediondas, maléficas e repugnantes... Mas eu os amo demais!!!

E hm, sobre serem 12 os cães, mas o narrador ser o13°... Ele seria um lobo? Ou ele seria um cão já morte, em espírito?

Enfim, me perdoe por esse comentário gigantesco, mas eu precisa dizer o quanto eu amei esse seu texto!!!

Um abraço, Meiling!

Postado 14/08/17 19:44

Olá, Mrs. Meiling!

Foi um prazer imenso ler seu comentário, fico muito feliz em saber que gostou do meu texto mais querido! Isso fez o meu dia, definitivamente, obrigado! E, sabe, não precisa se preocupar muito com o tamanho do comentário; li ele todo, sorri do início ao fim.

Sobre os livros que você mencionou, estou para ler O Chamado da Floresta, só preciso terminar a fila que vem antes dele... Ah!, e esse sengundo livro me parece bom, acho que vou me aventurar, quem sabe!

O fato do narrador ser o 13° cachorro (mas não se considerar como um, de fato) pode tanto ser algo mais simbólico (que eu só notei depois de escrever o conto por inteiro) quanto pode ser algo que foi intencionalmente planejado; devo expor? Hum...

De novo, muito obrigado pelos elogios, eles significam muitíssimo para mim sz

Abraços, Holzwarth

Postado 28/08/17 14:53

"Em nossos ouvidos, uiva o vento. Na noite escura, uiva o lobo."

De todas as frases, essa foi a que mais me cativou. É perfeita!

Sobre o narrador, talvez ele realmente não seja um cão e muito menos um lobo. Eu arrisco dizer que ele é humano. Enquanto lia me veio à mente aqueles trenós que são puxados por cachorros. Acho que pode ser isso. O narrador se sente parte daquilo tudo, se sente como os cachorros, mas acaba não sendo um... Ou eu posso estar viajando. Vai saber.

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Postado 13/11/17 14:06

Depois de quase três meses, deveria me sentir envergonhado por enviar a resposta só agora.

Seria o narrador um humano em pele de cachorro? É uma boa hipótese, afinal. Uma conexão muito forte com os cachorros poderia levá-lo a pensar como um, a entender o seu lado e a tomar uma atitude tão extrema como essa.

Muito obrigado pelo comentário!

Postado 13/11/17 13:47

O que um bão Death Metal não faz, não?

O cão-narrador, é humano, de acordo com as vozezinhas na minha cabeça... Eu imaginei tantos tons e sons e intensidades do inverno enquanto lia esse conto completamente inspiracional!

É como uma canção de fim de batalha. batalha perdida.

Intenso. Parabéns!

Postado 13/11/17 14:10

Death Metal é o tipo de música que escuto quando estou triste, meio pra baixo ou sem ideias. É muito bom pra trazer de volta os pensamentos quando a cabeça fica vazia.

Será mesmo? Um humano, em outro plano, num corpo de um dos cachorros, assistindo a cena pelos seus olhos e dando consciência ao animal. Uma ideia interessante.

Perder a batalha para o Senhor Inverno e se curvar perante sua crueza primitiva é uma coisa sensata a se fazer, eu diria.

Obrigado pelo elogio e pelo comentário!

Postado 16/11/17 03:41 Editado 16/11/17 05:06

Eu imaginei uma assombração dessas que ficam repetindo o modo como se tornaram o que são, revivendo cada e todo sofrimento, indefinidamente. Essa ideia me foi reforçada pela repetição das palavras/frases, como um eco do terror que se abateu sobre o protagonista e seus cães...

E no fim, só restam o frio e a Morte. De novo e de novo e de novo...

Muito bom trabalho, Sr Holzwarth! Sua narrativa e descrição são de uma particularidade interessante, assim como sua obra! Parabéns!

Atenciosamente,

Um ser gélido e morto por dentro, Diablair.

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Postado 21/11/17 22:13

Eu nunca aprendo a lidar com suas obras. Sejam sobre qualquer tema, nunca me acostumo com o que posso encontrar e, assim, me encantar (Isso seria um tipo de crush literário? Não sei, rs).

Brincadeiras a parte...

A melancólia que ronda as palavras é tão densa, que parte-me o coração. Cada frase pareceu cortar minha alma, como o gelo trincou até o espírito desses cães. O título do texto já me sugeriu que eles morreriam; que tudo o que eu leria a seguir, seria o caminho deles até a morte. A atmosfera é pesada, pois entramos e sentimos juntamente com este grupo, a neve tocar a pele, o frio matar a alma e a geleira se rompendo, enterrando o corpo.

Eu acho que ele não se vê como um cachorro, mas sim, como um cachorro-líder. Sei que é estranho, mas tentarei explicar. Ele sente mais que todos os outros, os guia, mesmo ouvindo os murmúrios de dor e morre com eles, como um deles, mesmo sendo quem os leva até a morte. No fim, o cão-líder era apenas um cachorro com responsabilidade demais e não conseguia se ver como parte do grupo, porque ele era a base dele.

Talvez eu tenha falado abobrinha, então me desculpe.

Parabenizo tu pela obra! Está ótima como sempre.

Abraços da Ternura.

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Postado 02/08/20 16:54

Isso tudo foi tão perfeito que nem sei dizer, senti toda a dor que vc descreveu, vc é muit bom nisso, escreve tão bem, ganhou uma fã, gostei demais mesmo viu *_*