Homeless Corporation
Eurynoumous
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 27/03/17 21:28
Editado: 27/03/17 21:46
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 10min a 13min
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Não recomendado para menores de dezoito anos
Capítulo Único Homeless Corporation

Aquele ali, disse o homem 1, apontando para um sujeito sentado no banco da praça.

O homem 2 assentiu. Os dois trajavam terno e gravata, cada qual com uma maleta.

O dia estava frio, nublado, a previsão era de chuva. O sujeito, chamado Alencar, estava sentado com um aspecto muito melancólico. Ele observava uma criancinha num balanço do parque sendo empurrada pela mãe.

— Bom dia, senhor. — disse o homem 1.

Alencar olhou para os dois figurões.

— Hein?

— Bom dia, senhor.

— Hein!? Rapaz, eu tô meio surdo. Que estranho! — Alencar então meteu o dedo no ouvido esquerdo; e uma barata saltou de seu ouvido direito.

— Bom dia, senhor.

— Oh sim, bom dia.

— Estivemos observando o senhor... Alencar, não é?

— Como? Da onde nós se conhece? Hum... Já sei... Ahá, cês são o que? Da polícia?

— Na verdade...

— Olha só! Se é por causa que eu roubei emprestado um carro anteontem, fiquem sabendo os senhores que foi por legítima defesa, hein!

— Sim, sabemos disso também. Certamente, Sr. Alencar, o senhor estava fugindo de uns bandidos...

— Hein? Vocês andam me seguindo, é?

— Nós fazemos parte da Homeless Corporation, Sr. Alencar.

— Home quem?

— Ho-me-less Cor-po-ra-tion. Veja bem: estamos certos de que o senhor se enquadra no perfil de nossa empresa.

— Opa! Quer dizer que eu vou ganhar dinheiro? Bença Deus!

— Isso mesmo.

O homem 1 explicou mais detalhadamente no que consistia essa empresa. Eles trabalham da seguinte forma: selecionam, geralmente, pessoas de aspecto miserável, bêbados, solitários, etc. A pessoa selecionada assina um contrato e o serviço a ser prestado consiste no seguinte: trabalhar como mendigo. Há várias classes de mendigo. Desde A até D.

— O senhor vai começar na classe D, Alencar. O salário nesse nível é R$500. O turno é de 8hrs às 17hrs. Nessa primeira etapa, a sua função é sentar-se na calçada das avenidas principais e pedir cinquenta centavos. Somente isso, de 8hrs às 17hrs. Vamos providenciar o seu uniforme.

Alencar não pensou duas vezes. Nem mesmo uma. Assinou de bate pronto o contrato. No dia seguinte, já estava trabalhando.

***

50 CENTAVOS, 50 CENTAVOS, EI! ME DÁ 50 CENTAVOS, EI! 50 CENTAVOS, PRA COMPRAR COMIDA!

A chuva caia sem parar. As pessoas marchavam, esbarrando seus guarda-chuvas em outros guarda-chuvas; pessoas apressadas, outras tranquilas; acompanhadas e risonhas, outras tristes e sozinhas... Em suma, a multidão, esse grande mar de loucuras e vida e morte, se arrastava pelo concreto da cidade... Um ou dois olhavam para Alencar, mas de relance. Sempre um misto de pena e indiferença.

Alencar estava devidamente uniformizado: uma calça marrom rasgada com manchas de vinho e barro e bosta; uma blusa do Flamengo que fedia à suor; um par de chinelos com as fivelas arrebentadas.

Ele tinha um semblante triste e cansado. Mas por dentro estava feliz: era seu primeiro dia de trabalho.

Um mês inteiro transcorreu. A somatória das esmolas deu R$15,50. Essa quantia foi descontada de seu salário. Ao receber o pagamento, Alencar foi informado de que foi promovido.

— Maravilha! Maravilha!

Ele ganharia agora R$1,500. Estava contente. Os sonhos pipocavam em sua alma... Iria juntar dinheiro, arrumar uma boa casa, conhecer quem sabe uma mulher.

Novas instruções lhe foram dadas. Sua função agora consistia em tomar cachaça, o dia inteiro, além de pedir esmolas. Ele deveria, também, aprender um certo roteiro — pra se caso alguém parasse e puxasse conversa com ele na rua, ele contasse que fazia isso e aquilo e não sei mais o quê.

Isso aconteceu numa tarde. Alencar estava vomitando em seu canto. Uma senhora parou, perguntou se queria ajuda, ambulância, ou algo assim. Ele disse que não, daí ela se sentou e começou a indagar sobre a sua vida.

— Meu nome é Carlos Ferreira da Silva. Eu vim lá de São Paulo. Minha mãe morreu no parto. Meu pai era um viciado em drogas. Ele conheceu outra mulher... Uma tal de Cláudia... Eles se casaram. Cresci na favela... Eles brigavam muito... E Cláudia me desprezava porque eu não era sangue do sangue dela, sabe como é... Ela tava doente, na época. Deprimida, espancada (meu pai metia o cacete na bicha)... Daí ele foi preso, depois que... Jesus... Foi horrível... Ele... Mas... Mas que diabos... Ele tava bem drogado, sabe? Daí ele... tinha... sei lá... um fetiche... é esse o nome? Mas que porra... Eles tavam na cama e ele chegou pra Cláudia e falou que iria comer ela. Ela não esperava, de forma alguma, coitada... que ele atirasse nela uma panela de água fervida e depois esmagasse a cabeça dela... Bem, daí ela morreu... Os miolos escorrendo no travesseiro... Depois ele contou, na delegacia, que salpicou sal no cérebro dela e... Puta merda... Enfim... Um banquete, foi isso o que ele fez... Pegou o intestino dela, o grosso, o delgado, tudo, tudo, e cozinhou... Os olhos dela também, ele cozinhou, tipo ovo mesmo, sabe, puta merda, quer que eu continue a história?

A senhora estava espantada, sem ar, com os olhos arregalados. Ela se afastou, se despediu, murmurando algo incompreensível, toda taticutate.

Alencar ainda contou essa história pra muitas outras pessoas, com todos os outros detalhes ainda mais tenebrosos. Sua mente estava definhando, por conta da cachaça. Depois de três meses trabalhando assim direto, estava já fora de si. Acreditava ser mesmo Carlos Ferreira da Silva. Todas as suas memórias verdadeiras desapareceram, assim, simplesmente.

***

Alencar comprou um carro, novinho em folha, graças ao seu salário. Ele saía de sua casa, rumo às ruas, e voltava, dirigindo. Só tinha um problema: ele estava sempre bêbado. Aliás, ele reclamou a respeito disso. Mas seus empregadores deixaram bem claro: a bebida é obrigatória na Classe C.

Foi então que acabou atropelando 23 crianças. Elas atravessavam a rua, numa excursão aos pontos turísticos da cidade. Era um belo dia de sol e todas morreram mortinhas, mortinhas.

Alencar quase foi linchado. Mas a polícia chegou a tempo.

Na delegacia, uma confusão dos infernos. Alencar não tinha dúvidas: sua vida acabou, definitivamente.

No entanto — e sabe-se lá como! — a Homeless Corporation conseguiu livrar a cara dele. E mais ainda: os agentes trabalharam para abafar o caso.

Tudo isso aconteceu num curto espaço de tempo. Em dois dias, tudo estava já resolvido. No entanto, Alencar sabia agora que seria demitido. Sim, era impossível que continuasse trabalhando. E, alías, sua consciência foi reduzida a pó. Sentia-se indigno de viver. Queria mesmo voltar correndo para a delegacia e se entregar; e, caso lhe negassem, ou livrassem-no mais uma vez, ele certamente se mataria.

De repente, porém, lhe comunicaram que seria promovido.

— Como assim promovido!!!!!?

— Você atropelou e matou 23 crianças.

— Então! Porra! Fodi com tudo! Não posso mais trabalhar!

— Pelo contrário, Sr. Alencar. Você agora é o funcionário do mês.

— O que!?

— E está promovido à Classe A. Meus parabéns.

O homem 1 explicou-lhe as suas novas funções. Alencar babava; a saliva escorria pelo seu queixo, descendo pelo pescoço e pingando no chão; estava evidentemente demente, confuso e aterrorizado.

***

Não era pra qualquer um, a Classe A. Suas novas funções eram absurdamente desumanas. Em compensação, o salário ultrapassava R$15mil.

Primeiramente, Alencar teve que passar por uma cirurgia numa clínica clandestina. Arrancaram-lhe uma perna e um braço e também um olho.

O roteiro também era outro. Aquela história de que tinha um pai canibal? Conto de ninar aquilo lá. Sua nova história era a mais trágica de todas. Ele era o homem mais miserável da cidade agora. Seu turno aumentou... de 10hrs às 4hrs.

O frio da madrugada era a migalha do pão que o diabo cagou.

Alencar começou a delirar... Andava falando alto, consigo mesmo.

— AH! MAS É O DIABO! VOCÊS TODOS SÃO PILANTRAS! AH! PILANTRAS, PILANTRAS, PILANTRAS! CADÊ O BOLSONARO? HEIN! UUUUUUUUH, VAMO DETONAR O PAÍS! VAMO ACABAR COM TUDO! MOCINHA! EI, MOCINHAZINHA! ESSES PEITÃO AÍ, EU QUERO ESSES PEITÃO AÍ! MINHA MÃE MORREU NO PARTO! NUNCA CHUPEI OS PEITINHOS DELA! VEJAM SÓ! SOU ALEIJADO! MAS TENHO UMA PERNA AINDA! E-LE-LÊ-LÊ-LÊ! FIFTEEN MEN ON THE DEAD MEN CHEST, YO HO HO, AND A BOTTLE OF RUM!

Ao berrar essa velha canção em inglês, Alencar parou, aturdido. Pisou em alguma coisa... Numa espécie de passado... Isso mesmo!... Ele sabia inglês. Desde quando? E aquela canção? De onde veio aquela canção?

Fazendo esforço para lembrar-se, Alencar foi a um canto e plantou bananeira. O sangue correu pra sua cabeça. Ele ficou tonto, começou a vomitar. Não, diabos, não lembrou de nada, merda, nadinha, nada, nada.

O dia passou, passou. Ele continuava na tentativa de recordar... Ah! Veio a noite, a madrugada. Chovia bastante, ele estava estirado no chão, tremendo. O vira-lata que estava ao seu lado, começou a rosnar. Um grupo de jovens se aproximava... Eram todos altos e bem brutos.

Alencar não se deu conta. Quando viu, já tinham lhe quebrado todos os dentes da boca; o sangue espichava de sua barriga devido a uma série de perfurações com cacos de garrafa; seu braço estava quebrado. Enfim, foi espancado, sem mais nem menos, de corpo e alma; cuspiram e mijaram nele; roubaram suas calças, esfregaram a sua cueca bem no meio de seu nariz.

Ainda estava, porém, consciente. A morte apontava no horizonte de seu ser, como uma lua minguante se levantando devagar entre montes estúpidos numa noite silenciosa.

FIFTEEN MEN ON THE DEAD MEN CHEST, YO HO HO, AND A BOTTLE OF RUM!

A lembrança despontou em sua mente. Eram versos! De Fernando Pessoa! Ah, ele os lia, na juventude... Quando ainda tinha sonhos e vontade de viver... Sorriu, com a boca cheia de sangue...

Como tudo isso foi lhe acontecer? Como foi, como foi que o barco de sua existência afundou nessa lama incompreensível e trágica, de merda e loucura, e abnegação da própria dignidade?

Como foi, como foi?

Não restava mais tempo. Tudo o que havia era dor, dor e dor. E a morte, finalmente.

Uma anestesia eterna...

❖❖❖
Apreciadores (3)
Comentários (2)
Postado 21/04/17 13:49

Eu ainda me surpeendo com toda a criatividade desse texto! Sério, foi muito bom ler e reler a história do Alencar, o cara mais "sortudo" de todos os tempos. Gostei do final desse trabalhor tão dedicado. Muito bom mesmo!

Postado 30/04/17 16:40

Sem dúvidas este texto foi pra lá de criativo, chega até a ser invejável a maneira como você conseguiu imaginar e transcrever toda a cena para esta obra. E é demonstrado muito bem a ascensão e o declínio do nosso protagonista. Se bem que chamar de ascensão é meio desumano.

Por outro lado, é como se a vida do Alencar de antes fosse a sua ascensão, e o declínio foram suas atitudes e sua ganância. Todavia, também podemos dizer o contrário, que a ascensão foi a sua morte... Tantas interpretações diferentes.

O único fato mesmo é a vida miserável que Alencar (ou seria Carlos?) se submeteu. As descrições das cenas também foram muito boas, só te dou a dica de revisar o texto depois. Fora isso muito bom.

Parabéns!

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