Já são quase dez horas da noite e o suor ainda escorre. As veias saltitam nos olhos, pescoço e braços, enquanto a coluna é prejudicada pela repetição de: agachar, ajoelhar, limpar... agachar, ajoelhar, limpar...
Me olho no espelho e o reflexo que vejo é: revolta, dor, solidão...
Sinto minha coluna voltar a queimar, e é uma dor daquelas de movimentos repetitivos.
Minhas mãos molhadas já não se misturam com o resto de meu corpo e eu permaneço intacta, com medo de sujar o chão que acabara de ser limpo pelo rodo nas mãos de outra mulher.
Hoje é sexta-feira, e para alguns o dia ainda está começando, porém nos olhos através daquele suor e rodo o dia é trajado de orações para que as horas de trabalho finalmente se acabem.
Eu, negra e estudante, numa universidade privada, dominada por pessoas brancas, me senti o pano que lambia os ladrilhos de um banheiro feminino sujo. Aquela outra negra era eu, e meu reflexo no espelho era ela.
Mãos atadas e húmidas dirigiam-se novamente a sala de aula para estudar: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Irônico, não?
Segundo a história do Brasil, A Lei Áurea, oficialmente Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de em 1888 extinguiu a escravidão no Brasil.
24/03/2017. Uma mulher negra ás 21:53 da noite limpa o chão de uma universidade comandada por um homem branco. 21:56 da noite, uma mulher negra faz um comentário sobre o fato das relações sexuais no período colonial brasileiro terem sido consumados entre o homem branco e as mulheres negras, através de estupros, com a justificativa segundo estes homens que relações estas eram consumadas devido à escassez de mulheres brancas no período das grandes navegações.
Vemos aqui então, o inicio do famigerado machismo patriarcal na sociedade brasileira.
22:15 da noite, uma negra comenta com a outra:
- Se a gente ainda tivesse no período da escravidão, estaríamos fudidas!
As mãos secaram. O suor foi limpo nas mangas de um uniforme quente. E as diferenças se completaram e se uniram numa só negra. E nisso não há nenhuma ironia.