"Eu apenas ouço gente morrendo", foi o que Crystal disse à grande figura esguia e negra que insistia em olhá-la de cima à baixo, mesmo naquele momento.
A criatura, com seus olhos vermelhos apenas continuou fitando a jovem, como se fosse a coisinha mais engraçada que já vira em toda a vida.
Com suas mãos lamacentas e esguias, a criatura pegou a menina pela cintura e começou a chacoalhá-la.
"Pare por favor!", ela tentava gritar em vão.
Não sabia se sentia mais medo da morte ou da lama fétida e ardida que engolia seu corpo aos poucos.
"POR FAVOR!", tentava insistir para a criatura que não conseguia ouvir uma só palavra. Estava entretida brincando com seu novo brinquedo... Uma menina magrela, loirinha com gritos agudos demais.
A criatura pensou quanto a humana poderia custar... Duas almas? Meia alma?
"EU NÃO PERTENÇO AO CEMITÉRIO! POR FAVOR ME SOLTE", a menina fazia força, chorando como nunca antes na vida.
A Lua alaranjada, com um grande arco iluminado à sua volta, iluminava as árvores secas do cemitério que pareciam ter vida e serem cúmplices de cada movimento.
Crystal não sabia mesmo aonde tinha se metido... Jamais foi de acreditar em histórias, entrou no cemitério às 03h09 da manhã apenas para curtir com a galera, desafiar a natureza... Como ela saberia?
"Quando você ouvir gritos, fuja!", foi o que seu namorado aconselhou no meio da roda de bebuns.
"Por quê?!", eles indagaram.
"Os gritos são as pessoas morrendo, este cemitério é diferente, ele é um portal para um tipo de onipresença, quando vocês ouvirem pessoas gritando, corram o mais rápido possível, saiam do cemitério, vocês saberão que vão ter ido longe demais, estarão escutando pessoas do mundo todo morrendo e suas almas estarão à caminho deste cemitério, se a criatura achar vocês, vai pensar que estão mortos, e então, não vai ter mais volta", ele disse com os olhos arregalados de pavor, falou tão sério que Crystal tremeu.
"Não tem jeito de escapar se a coisa nos encontrar?", indagou uma menina do grupo.
"Tentem fazer ela perceber que vocês não pertencem ao cemitério".
Dadas as ordens, cada um dos oito jovens, brilhantemente se separaram naquele cemitério florestal enorme.
Crystal estava bêbada e sozinha.
Começou então a gritar "SORRATEIRO! SORRATEIRO!"
Chamou uma, duas, sete, quatorze, vinte vezes pelo nome que a fazia querer rir.
A menina então percebeu que estava completamente só, enjaulada por inúmeras estátuas antigas, repletas de plantas agarradas a elas.
Foi então que ela ouviu o primeiro grito.
"Que engraçado pessoal!", ela atirou uma pedra no meio das árvores.
E depois, mais outros gritos seguiram o primeiro... Logo tornaram-se lamúrias, urros de terror, gritos tempestuosos... Ela começou a se sentir mal... Começou a ficar tonta.
Crystal... Crystal...
Ela ouvia ao fundo seus amigos chamando por ela.
"Imbecis, me drogaram", mas não... Não era droga... Era o Sorrateiro chegando, e ela estava tão tonta e sua cabeça doía tanto, que ela apenas caiu de joelhos no chão lamacento e apagou.
O ápice chegou.
O silêncio mortal.
Nem vento. Nem cheiro, nem cor.
Era como se ela estivesse dentro de uma bolha isolada do mundo.
Crystal não estava de olhos abertos, mas podia ser os vultos passando... Suas vozes estavam abafadas, até começarem a ficar cada vez mais altas e estrondosas.
"ERIK!!!", ela gritava por seu namorado "AMOR SOCORRO!"
Ele nem estava mais lá, ele estava na cidade, tentando convencer a polícia de que a história dele não era um trote.
"ERIKKKKK!!!", ela urrava em vão enquanto a voz das almas a ensurdecia.
De repente, o chão tremeu. Uma vez... E de novo, e de novo.
Crystal abriu os olhos e se deparou com uma GIGANTESCA VISÃO.
Era ele.
O Sorrateiro.
"Venham... Almas...", e milhões de espectros adentraram ele.
"Há algo errado...", sua voz estrondosa afirmou.
Foi quando a criatura se deparou com Crystal, mijada e cagada num canto do cemitério.
"Uma alma amedrontada... Não tenha medo, você não vai sentir mais nada...", o Sorrateiro explicou gentilmente.
"EU NÃO PERTENÇO AO CEMITÉRIO!", ela chorava e implorava.
"Pertence sim... Agora sim..."
"Não, eu não pertenço!"
Crystal juntou suas forças e começou a correr às cegas, tudo o que via era a Lua e os olhos vermelhos da criatura tão alta quanto o céu.
"Você pode correr, mas não chegará muito longe... Alminha tola..."
O Sorrateiro iniciou sua diversão noturna... Sabia que ela era humana, era tão raro achar um humano vivo! Ele brincou de pega-pega, ela corria um quilômetro, ele a derrubava com um passo.
A menina estava exausta, não tinha mais pra onde correr. As vozes deixaram ela surda. Ela não parava de gritar, mesmo sem ter certeza de que sua voz estava audível.
"EU NÃO PERTENÇO AO CEMITÉRIO, APENAS OUÇO GENTE MORRENDO!"
"Acho que você vale umas três almas...", o Sorrateiro sorriu.
Pegou-a em suas enormes mãos lamacentas e a engoliu.