Tenho uma mania irritante que repito sempre antes de ensaiar uma cena, olhar no espelho. Há algo neles que me faz ficar encarando por alguns segundos, parece haver outro mundo, uma realidade invertida. Certo dia, enquanto eu treinava expressões em frente a ele, aproximei meu rosto do reflexo e tive a impressão de que o outro eu me puxaria para dentro. Embora suas feições fossem iguais às minhas, algo no olhar parecia-me diferente.
Eu penteava meu cabelo enquanto fitava fixamente o reflexo e peguei-me divagando mais uma vez. Luca logo chegaria, eu o estava esperando para nosso ensaio antes da apresentação. Ele é o único primo que seguiu na carreira artística comigo, o resto da família achava perda de tempo.
Tive a sensação de estar encarando uma outra pessoa naquele reflexo, talvez outro lado meu. Tudo naquele lado tinha uma atmosfera diferente. As paredes rosas e os móveis do meu quarto, pareciam mais sombrios vistos através do vidro. Hesitei em tocar, era muito tolo querer certificar-me de que era apenas um espelho e estava tudo normal, mas eu precisava fazê-lo, era parte do magnetismo estranho que eu sentia.
Senti um frio na barriga ao aproximar a mão, eu sentia que algo me pegaria e estava prestes a entrar em uma enrascada. Para onde eu iria? Quem estaria ali?
Levei minha mão à superfície de vidro mais uma vez e senti uma onda de choque me atingir. A impressão de que eu seria sugada estava novamente ali. Meu reflexo piscou, a expressão dele tinha algo macabro no olhar. Eu encarei com mais atenção, tinha certeza de que eu não tinha piscado. Senti a rigidez dos músculos da minha face, eles não se moveram, então como eu poderia estar com aquele meio sorriso assustador que eu via no espelho?
— Começou sem mim?
Virei assustada em ouvir a voz de Luca em minhas costas.
— Como você entrou? — perguntei confusa
— A porta, estava aberta — respondeu como se fosse a resposta mais óbvia do mundo, mas eu sempre a trancava quando estava sozinha em casa.
— Por que todos os espelhos lá de baixo estão cobertos?
— Como assim estão cobertos? — perguntei incrédula.
Desci as escadas quase tropeçando, quando cheguei na sala, percebi que o espelho da parede estava coberto com um lençol. Corri para o banheiro, a mesma coisa aconteceu ali. Todos os espelhos da parte inferior da minha casa ,estavam cobertos por lençóis.
Subi até o quarto dos meus pais, embora o espelho deles não estivesse coberto, o vidro estava escuro, lembrava até aquelas películas de insulfilme que as pessoas colocam nos carros para evitar mostrar o que há por dentro.
Luca me seguia por todos os lugares sem falar nada, parecia um fantasma atrás de mim. Seu rosto mantinha uma expressão neutra, que dava um ar sério junto com as vestes pretas. O cabelo loiro dele parecia muito bem penteado, porém, havia algo que lembrava areia sob os fios.
Eu o fitei apavorada. Virei-me para o espelho novamente e o toquei. A superfície escura era rígida como vidro grosso. Peguei um pano e comecei a limpar o vidro, mas nada acontecia.
Luca continuava sem falar nada. Senti meu pavor aumentar, minha sanidade me deixava aos poucos. Desci correndo as escadas mais uma vez e arranquei o lençol do vidro da sala. A moldura “vintage” que sustentava o espelho, agora sustentava o vidro escuro, igual ao espelho no quarto dos meus pais.
— O que está acontecendo? — perguntei à Luca desesperada — Por que os vidros estão com essa película escura?
Eu queria que tudo voltasse ao normal. Ver os espelhos daquele jeito me alertava que alguma coisa estava muito errada. Peguei vários produtos diferentes de limpeza para retirar a camada escura e nada resolvia. Quanto mais eu passava, mais escuro ela ficava.
Peguei-me aos prantos no chão. Eu só precisava esperar os meus pais chegarem e tudo se resolveria. Mas eu não conseguia esperar. O sentimento de raiva foi crescendo dentro de mim. Eu precisava resolver aquilo, teria que haver uma explicação. A casa inteira estava imersa no vazio, a luz dos ambientes estava mais fraca, os móveis pareciam mais velhos. Desnorteada, segui até o meu quarto, onde tudo estava normal, pelo menos antes de Luca aparecer.
Ao abrir a porta, assustei-me com o aspecto antigo que ele tomara. As paredes cheias de vida, pintadas de rosa não estavam mais coloridas. O mofo tomava conta das paredes, agora brancas. Meu quarto estava sombrio. Me senti em um filme de terror, o ar era denso ali dentro. Meu espelho também estava escuro.
Em um ato de desespero, desci até o porão, peguei o machado do meu pai e o carreguei até meu quarto, decidida a sair daquele filme de terror. Gritei por Luca, que havia desaparecido sem eu perceber. Por um momento eu pensei que meu primo havia atraído tudo aquilo, mas deduzi que poderiam ser os espelhos, sempre pensei que havia algo de errado com eles.
Levantei o machado em direção ao meu espelho, seria o primeiro que eu quebraria.
— Não! — Luca gritou.
Sobressaltei e o fitei ainda empunhando o machado. Ele me fitou sem responder a minha pergunta.
— Não faça isso, da última vez que eu quebrei um desses espelhos eu morri.
A última palavra ecoou em minha cabeça. Morto? Não podia ser, não fazia sentido. Soltei o machado no chão, esforçando-me para processar a informação que eu recebera.
Se ela estava morto, como eu conseguia interagir com ele? Minha cabeça doía, perdi a estabilidade devido à fraqueza nas pernas e cai no chão. Tudo parecia girar. Fitei o espelho em choque.
O vidro escuro voltou ao normal mostrando uma garota deitada no chão ao lado da cama, junto a ela havia um casal chorando. A cabeça ensanguentada da moça deixava uma poça no chão. O homem abraçava a mulher que cobria o rosto. Ele ajudou ela a se levantar, deixando livre para que eu pudesse ver o rosto da garota ao chão.
O grito ficou preso na garganta. A garota deitada era eu, reconheci o quarto. Chorei descompassadamente. Meu pai se aproximou do espelho e eu vi a dor em seu olhar. Seus olhos fitaram os meus por alguns instantes e depois um pano preto foi colocado por ele. Tudo escureceu.
Bati no vidro chamando meu pai. Eu gritava que estava ali. Estava presa e precisava de ajuda, eu queria sair dali.
— Eles tamparam o espelho para que você não pudesse voltar.
A última coisa que me lembro foi de ter ouvido a voz de Luca me dizendo que tudo estava acabado e então, tudo escureceu definitivamente.