A Valentina não vai fazer Medicina!
Scheffer
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 01/08/23 09:55
Gênero(s): Crítica Reflexivo
Avaliação: Não avaliado
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Capítulo Único A Valentina não vai fazer Medicina!

Eu estava tomando um café, enquanto ouvia a conversa da mesa alheia (desculpe-me, caro leitor, eu entendo a tamanha indiscrição, mas, eu juro, é o tipo de estímulo auditivo que eu simplesmente não consigo ignorar, ainda mais se o assunto para interessante).

Haviam duas senhoras, conversando sobre a vida da Valentina. Uma delas, parecia ser a avó e insistia indignadamente:

- A Valentina deveria fazer remédio, deveria, mas ela não quer. Quer fazer psicologia! Mas, ela deveria fazer medicina, pensa bem, se ela se formar em psicologia, vai ter que fazer uma especialização, um mestrado, doutorado… daria o mesmo tempo que fazer uma residência. A diferença é que ela estaria ganhando muito mais!

(assim como metade da família médica, pelo que eu compreendi).

naquela altura do campeonato, a minha vontade era simplesmente levantar e fazer um sermão! Eu não sou padre, eu não fazia ideia de quem era Valentina, mas sua recomendação deveria ser defendida. Eu levantei… acovardei-me e fui para a casa… a verdade é que eu sou péssimo em improvisos e aquilo não daria certo… por mais que vai não me faltou!

Depois que partimos, fiquei pensando em como aquela conversa simples retratava um pouco dos “ideais” da civilização contemporânea, que pode muito bem ser traduzido por dinheiro, dinheiro, bufunfa, grana, dindin. Não, não importava o que a Valentina gostaria, não importava se ela tinha um propósito ou uma certa habilidade pela profissão. Para aquela avó, parecia ser muito simples: escolher o que lhe der mais dinheiro. O contrário, pela sua feição, seria inadmissível.

Para compensar a minha covardia, lembrei da vez em que eu chorei coragem e fui mesmo brigar com o meu ex-psiquiatra. Eu defendo a ideia de que seria possível viver sem antidepressivos, mesmo após uma depressão e algumas crises de ansiedade generalizadas, e que senti aquela estória da falta de neurotransmissores uma conversa para boi dormir e para a indústria farmacêutica acordar neh (claro, eu fui bem mais educado e técnico, mas no final, foi isso mesmo que eu quis dizer).

Enquanto que, surpreendentemente, em alguma etapa da discussão, ele me respondeu que tomava um antidepressivo de manhã e outra à noite, confessou-me que chegou em um momento da vida dele em que ele estava ganhando bem, mas, não via mais sentido. que ele fazia. A resposta que ele encontrou pra si mesmo foi aquela que possivelmente ele aprendeu na residência? É questão de química, não é questão de vida.

O problema era o seu, e o meu, cérebro que não produzia neurotransmissores de modo suficiente e isso estava muito bem embasado, graças às teorias da época e ao seu histórico familiar. Era genética. Dentro dessas restrições, não havia o que ser feito a não ser aceito.

Eu lembro até hoje dele olhando para mim e dizendo: Ana, está vendo estes óculos? Assim como eu o utilizo porque não enxergo direito, você também deve utilizar o antidepressivo, pois não produz a serotonina (um neurotransmissor). Na época eu prefiro não discutir essa falácia, especificamente especificada como falsa analogia.

Eu entendo que o intuito dele com aquilo era simplificar, o, porém é que é justamente esse o problema. Algumas vertentes da medicina parecem simplificar o complexo jogo de nossas reações químicas, que derivam não só da genética, como da epigenética, conduzidas por fatores ambientais, além de nossa estrutura cognitiva, comportamental e emocional. É fácil resolver o problema enxergando desse modo, (aliás, enxergando mal e precisando de óculos) o problema é que… os antidepressivos resolvem mesmo os problemas? Ou deveria ajudar a resolver os problemas?

Essa discussão ocorreu faz alguns anos… e aqui eu gostaria de fazer a primeira ressalva. Meu intuito com o texto não é fazer as pessoas fugirem dos psiquiatras, pois, isso seria outra falácia intitulada como generalização apressada, ou seja, porque um é assim, todos serão. Pelo contrário, acredito que a psiquiatria tenha evoluído muito o momento, e que novas abordagens até estão sendo propostas. Deixei aqui minha total proteção aos profissionais que verdadeiramente buscam compreender a complexidade humana e restaurar a sua saúde mental.

Feita a ressalva… como eu já confessei, eu não me dou bem em improvisados ​​e na época eu estava com o meu sistema nervoso tão alterado que a única coisa que consegui pensar depois daquele desabafo foi: bom, se ele mesmo toma antidepressivo, ao menos quer dizer que pelo menos ele realmente acredita na teoria que ele aplica, isso é digno de nota e, no fundo ele é uma boa pessoa. E digo isso com propriedade, pois ele havia me conquistado restabelecer de um quadro de ansiedade grave acrescido de uma tristeza profunda há muito tempo. Eu sou realmente grata por isso.

O meu, porém, é que eu estava insatisfeita com a ideia de que deveria tomar aquilo pelo resto da minha vida. E foi por isso que ele nunca mais me viu.

Eu sigo a procura de respostas, não foi um caminho fácil, na busca por autoconhecimento, precisamos mexer dentro, e nos deparamos com muito sofrimento, medo e apreensão. Além da solidão, pois, quando contestamos uma teoria famosa, também nos sentimos sozinhos e sem apoio. Perguntei-me várias vezes se estava no caminho certo, encontrei respostas na meditação (leia de novo e devagar para não confundir com medicação), ou melhor, encontrei respostas em um exercício contínuo de consciência sobre as minhas ações e só consegui superar as minhas crises quando eu genuinamente passei a conhecer a si mesmo e com isso também reconheço o meu propósito de vida, que, com essa história, não poderia ser algo diferente de Filosofia.

Hoje, sinto por aquele não ter sido o momento de dizer: com todo o respeito, considero que, talvez, o que lhe falte não são neurotransmissores, é um propósito. Sinto muito por você não conseguir perceber as consequências de não olhar criticamente para uma cultura fundamentada no lucro. Em que somos ludibriados e tentados a escolher as nossas profissões prioritariamente por status e dinheiro. Até que depois de um tempo, comecei a perceber que isso não é suficiente para preencher o vazio que cresce dentro da gente a cada dia, alimentando-se da falta de sentido.

Talvez, ele estivesse na profissão certa, reconheço ser equivocado, julgando sem conhecer. Não sei as motivações de sua escolha. O que eu sei, é que aquela teoria não parecia estar funcionando. E que se a tristeza batia em sua porta, com certeza ela teria um motivo de ser muito além dos seus neurotransmissores.

É por esses que a VALENTINA NÃO VAI FAZER MEDICINA! E seja lá onde você estiver, eu gostaria de dizer que eu torço muito por você! <3

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Notas de Rodapé

PS: É sempre complicado tratar de complicações complicadas. Quadros de depressão e ansiedade são complicações complicadas, causadas. Em função disso, acredito que sejam necessárias algumas observações. Gostaria de dizer que não me oponho ao uso de medicamentos psiquiátricos, desde que seja implementado junto com uma estratégia e que tenha um prazo determinado. Desde que eles não seguem a principal solução para os seus problemas, pois, acredite, eles não são! Oponho-me a teorias reducionistas que limitam o ser humano a uma mera composição química. Oponho-me a uma sociedade acrítica, que não consegue enxergar o fato de que uma vida fundamentada no lucro, em que o dinheiro é fim e não meio, não só está nos deixando doentes, como também pode nos cegar a ponto de não conseguirmos enxergar os nossos principais motivos de viver.

Oponho-me a tudo isso porque realmente acredito que perdemos muito do tanto que aprendemos ser e viver se compreendêssemos mais sobre nós mesmos!

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DICA VALIOSA: se você tem interesse por um olhar mais crítico quanto ao uso dos medicamentos, recomendo o podcast “ A Medicalização da Vida ”, do Ouse Saber Podcast.

Um abraço apertado & até a próxima!

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