Acordei com terra embaixo das unhas.
Corajosamente, com a ponta da língua, lambi para conferir se era chocolate.
Havia uma caixa de bombons destroçada entre meus lençóis, ontem a noite eles tinham formato de animais de zoológico - dos mais variados - devorei todos como um gigante esfomeado.
Mas hoje, cuspi ao constatar que era terra mesmo. - Acho que há algo que venho enterrando há tempos... Enquanto durmo, ou quando me sobra tempo.
Cascalho, pontos vermelhos, fiapos de grama seca.
Fico ali, em silêncio, contemplando o mistério.
É a primeira vez que percebo algo do tipo, pode ser enquanto eu brincava com o gato, lá fora, ou enquanto recolhia as folhas secas que alguém varreu para frente da minha calçada...
Passei 3 minutos pensando sobre.
Em minha cabeça, me imaginei como uma assassina muito inteligente que nem sequer precisará de álibi.
Como ela é?
Como ela cheira?
Qual é seu nome?
"Lídia! Tá em casa?" - interromperam meu devaneio.
Não estou.
É sábado, desbloqueio a tela suja e rachada do meu celular.
13h43.
Sempre números ímpares, em situações singulares.
Não estou.
Mas ela estava ali.
Me arrastei furtivamente até as cortinas semi-cerradas. O golzinho vermelho estava estacionado torto, com duas rodas em cima da calçada.
Dona Amélia.
Abri a janela com sufoco, essa merda está desalinhada desde aquela noite... Outra hora paro pra lembrar o motivo.
"Não tem pão dormido não!" - grito para a senhorinha de cabelo roxo que já estava a cinco passos da porta de entrada.
Por qual motivo eu disse isso? Em minha cabeça, sairia menos rude, como se falando com uma amiga de anos, mas não éramos amigas. Nos víamos, às vezes, pela rua, ela morava lá no início, uma casa cheia de plantas diferenciadas, vasos feitos de privadas, cabeças de bonecas, baldes quebrados, tudo que se possa imaginar.
Ela para com um susto, limpa os óculos retangulares e dá um sorriso amarelado.
"Ô minina, cê tá aí, é?" - ela vem cambaleando até mim.
Não estou.
"O Elton já chegou?" - ela tenta espiar por sobre meus ombros.
Ele não está aqui.
"Chegou e já saiu, nem vi ele, na verdade, mas a porta do quarto está aberta - me viro para conferir - é como eu sei que ele saiu..." - suspiro incomodada.
Ela contorce a face.
"Mas o carro dele está na garagem!" - ela coça a cabeça.
O silêncio deselegante preenche o ar. Ela quer dar para o meu marido. E se ele não fosse tão frouxo, com certeza comeria a velha.
Dou um sorrisinho irritadiço.
"O que a senhora precisa?" - arqueio a sobrancelha direita.
"Ah, só perguntar uma coisinha... Mas eu volto mais tarde, viu?" - ela fechou as mãozinhas inchadas em um semi-tchau. Unhas vermelhas descascadas.
E então, ela deu as costas sem se despedir.
Fiquei ali, com metade do corpo atrás das cortinas, vendo sua silhueta arredondada andando rapidamente até o carro, mas ela não entrou. Não abriu a porta, não ligou o motor e não destruiu o gramado só para dirigir até seu próprio portão, lá no começo da rua.
É uma figura e tanto, apesar dela me irritar - pelo interesse estranho que ela tem no meu marido - em outras vidas, ou até mesmo nessa, algum dia eu me pareça com ela.
Uma velha livre demais para pintar o cabelo de roxo e fazer vasos de plantas em cabeças de bonecas.
De qualquer forma, independente da idade, somos apenas duas meninas vivendo a mesma vida, pela primeira vez.
Ela atravessou a rua, e começou a conversar com o pedreiro que estava fazendo o muro dos vizinhos da frente.
O sol ardente olha rígido para minha testa.
Tenho o pressentimento de que todos sabem de alguma coisa, menos eu.