O Fim É Também o Começo
Holzwarth
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 07/05/25 17:20
Editado: 07/05/25 21:13
Gênero(s): Drama Reflexivo
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 16min a 21min
Apreciadores: 1
Comentários: 1
Total de Visualizações: 39
Usuários que Visualizaram: 3
Palavras: 2592
[Texto Divulgado] "Apenas o momento " Luísa foi ao bar sozinha o que pode ser muito bom ou muito ou muito gostoso
Não recomendado para menores de catorze anos
Notas de Cabeçalho

morbilhões de mortes

Capítulo Único O Fim É Também o Começo

Olhava para o pátio do vizinho naquele momento. Via ora a casa laranja, ora a casa verde. Ao lado, uma amarelada — não, duas. Ensanduichavam pela esquerda e pela direita duas casas amarelas o pátio do vizinho. Uma tinha um andar, grades cinzentas e arqueadas, um jardim escuro, um carro na garagem. A outra tinha dois andares, uma varanda — com parapeito de madeira —, quintal de brita, um coqueiro no canto. A rua continuava para os lados; para a esquerda, sabia que Maura não morava mais ali com os filhos, que havia ido para algum lugar cujo nome Kurt havia esquecido, que levara todos os cães, menos o pastor-alemão. Não era alemão, era belga, diziam, pois o muro amanheceria pichado se fosse alemão, e todo mundo teria de ir embora para Ivaiporã — e nunca mais voltar para Guaíra. Na direita, tinha a casa da dona Valle, a casa da Raquel, a casa do Mica e da esposa, a casa dos cachorros cor-de-nuvem como a xícara do livro. Dizia: era cor de nuvem porque já foi colada várias vezes, então a menina não precisava se preocupar por tê-la quebrado. Ele, no entanto, tirou seis: não andou durante a palestra. Ficou parado. Chorando.

O ruflar das roupas trouxe-o para dentro de casa, onde as carrancas e os pretos-velhos viam-nos das paredes brancas. Os piratas mostravam os peixes na lembrança em madeira. As pranchas e as cadeiras e a mesa dormiam atrás da porta assim que o céu ameaçou despencar por toda a barra — agora, cinza-chumbo, murmurava por cima das casas. Debaixo da lâmpada que pendia do teto, Mel ajeitou a paleta na mão, já suja de tinta; deixou que o vento lá fora assobiasse, que a terra lá embaixo tremesse, que o mar lá longe rugisse, e perguntou:

— O que tá fazendo?

— Pensando.

Fitou-a de volta, mas sem igual intensidade. Ela estreitou os olhos pretos, ajeitou o robe, pôs uma mecha de cabelo para trás e só piscou quando Kurt tornou a olhar para fora. O pátio do vizinho colecionava redemoinhos.

— Sempre que falo com o Roberto, ele me lembra da vez em que você disse...

O hambúrguer é mais feliz quando está na vaca.

— Falei com ele hoje, sabia?

Disse que estava noivo, que ia casar com aquela mocinha da loja de roupas perto da praia e não-sei-mais-o-quê, que precisaria de presentes, porque comprou uma caranga nova para ir para o baile. Era 1980 de novo lá fora. As pessoas andavam no calçadão — um calor! —, ficavam o dia inteiro na praia, debaixo dos guarda-sóis, bebendo cerveja aguada, passando bronzeador, saindo de lá mais vermelhos do que bronzeados (alguns ainda tomavam uma corzinha, iam para debaixo das duchas lavar o óleo, depois iam para o carro); depois, iam para as barracas na beira mar, tomavam água de coco, comiam milho. As crianças jogavam bola. Do topo do Edifício Presidente, ameaçaram jogar uma menina lá de cima. Era irmã dos quatro. Jogar de brincadeira, balançando ela feito numa rede, segurando os pés e as mãos, cantando um, dois, três e Juliana vai lá na areia. As latas começaram a boiar no mar, e todo mundo foi ver o que era. Leite em pó, era leite em pó, só podia ser leite em pó. O Roberto pegou uma, viu o que era — folha, planta —, foi com os amigos decidir o que fariam. Não era naquela praia, era outra, disse, os dois foram para as pedras brancas e pedras pretas, que o avô falava que alguém tinha pintado para serem daquele jeito. Jogaram as cinzas no mar — branco com preto dá cinza. Ele trocou a estação do rádio; veio aquela da cidade. Logo em seguida, achou melhor desligar. A chuva caía, não havia ninguém na praia, o vento chegava galopando, o cachorro do Samir latiu grosso. Kurt desligou a tevê também.

— E você? Conseguiu falar sobre aquele dia com ela?

— Ainda não.

Mel tomou um lugar à frente, sentada na cadeira estofada, olhando fundo nos olhos dele, como se pudesse ligar o tocador de discos com a mente e fazê-lo lembrar de todas as vezes em que escutaram aqueles mesmos acordes. Ao invés de devolver o contato, ele encarava o quadro com o rio, pendurado na parede vermelha. Havia uma cidade, morros, árvores. Havia também a roda d'água. Vinha tudo na direção deles dois, de uma vez, babando como um cão raivoso, gritando para que escolhesse uma, uma só, e depois dizer o porquê de não ter escolhido aquela ou aquela outra ou não ter escolhido nenhuma. Kurt chorava. Sentiu um aperto no peito e balançou a cabeça. As lágrimas não estavam mais lá, contudo haviam cavado covas em sua cara, de tanto passarem pelas bochechas.

— Você se sente mal? — tentou. Finalmente a encontrou, e a tempestade lá fora ficou ainda mais cinza.

— Como se estivesse afundando na areia — E, quase sorrindo, tornou a fitar o quadro.

— É por isso que tem pesadelo? Você falou para ela sobre os pesadelos?

— Ela já sabe.

Estava de volta para diante do cavalete. Talvez longos segundos tivessem passado e, de tanto se juntarem, tornaram-se minutos que passaram em silêncio. Mel pegou o pincel encharcado de tinta. Voltara a pintar uma casa amarela, na frente de um campo de trigo, entrecortado por uma rodovia negra e recoberta por pétalas e flores e folhas da cor do ouro, como Kurt havia contado há alguns dias. Foi uma viagem à Itália, mas ele nunca havia pisado lá a não ser no sonho, e contou para ela como era a região dos penhascos para o mar azul e verde, como era a floresta, as casinhas apinhadas ao redor do estacionamento — onde a velha oferecera sopa de tomates e cenoura —, o caminho para a casa do velho de blusa azul. Estava ali, agora, para ser preenchido; a tinta fresca brilhava sob o lustre do teto.

— Queria te ver bem — disse.

— Não sei por que você se preocupa. Eu nunca estive melhor.

— Me preocupo porque você sempre faz o que não é bom pra você. Ela não pode te receitar nada, mas e se você precisar de novo?Kurt esqueceu a última parte. Lembrou-se de outra ela, não ali presente, nem daquela sobre a qual falavam. A roda d'água parecia girar contra o riacho branco e azul, viva — quando viu, já dizia:

— E não é assim que as coisas são? Você vê o que é melhor, concorda, e ainda assim segue o pior.

— Erudito da sua parte.

— Conhece? — perguntou, com a unha na boca, as sobrancelhas no topo da testa, um sorriso a rasgar os lábios.

— Claro que não. Quer dizer, posso conhecer, mas não lembro da citação. E você pegou dela?

— E por que não pegaria?

O resto (indizível) ficou preso na garganta. Mel pintava os cascalhos do caminho. O que acontecia com as pessoas quando elas morriam? Quer dizer, qual caminho tomavam? Elas não vão para lugar nenhum, disse à professora, e foi repreendido de pronto. Fique até depois da aula, Kurt, para anotar no seu caderno. Não quero, por quê?, porque não, então puxa essa cadeira por quê porque eu tô mandando mandaquempodeobedecequemtemjuízo. Todas as crianças foram para o pátio e depois para casa, enquanto ele ficou na sala; ali, tinha uma menina chamada Caroline e um menino chamado João Paulo. Só. Era para copiar o que estava no quadro — a atividade do dia — e depois escrever no caderno que, na verdade, o que havia depois da morte era o céu para os que acreditavam em Deus e viviam Cristo e o inferno para o resto. Kurt desenhou um rosto no caderno — uma cabeça horrenda, flutuante —, ajuntou as coisas e fez menção de ir embora. Pra onde você tá indo?, ela perguntou, e ele disse: estou com fome, é hora do almoço. A professora tirou uma mexerica da bolsa e estendeu para ele. Não suporto mimosa — e saiu da sala, levando mala no ombro e penal na mão. As batidas do pincel contra a tela guiaram a chuva cinza pelo quintal; molhou os pneus, os vasos, os pés na varanda de alguma tarde de banho de chuva, ladrilhos molhados, telhas caindo da garagem e água inundando a casa. Kurt fitou-a na seda do robe, mas perguntou olhando para o quadro:

— Quanto tempo ainda falta?

— Preciso pintar a casa toda — Mel olhou-o por cima do ombro. — E depois o resto.

— Falta o homem — insistiu, de repente cheio de um pesar grande como o mundo.

— Ele vem só depois. Aí você pode ver como ficou.

O portão fez barulho. Não era ninguém. Ele pôs-se a admirar o riacho.

— Pensando?

Kurt apenas indicou o quadro com o queixo.

— Admirando a paisagem.

Estavam na beira da praia, talvez fosse depois da chuva — da tempestade —, caminhando pelo calçadão. Ninguém frequentava a barra àquela altura do ano. Os locais estavam em suas casas. Não havia bicicletas na rua. Quando chove, todo mundo sai das ruas, porque você não consegue andar de bicicleta no molhado, mas na barra, as pessoas conseguem, porque é o que elas fazem todos os dias. O principal meio de transporte é a bicicleta na barra, e quando vem algum turista, geralmente na alta temporada, eles vão ou andando ou de carro e esquecem das ciclovias porque na verdade na barra não tem ciclovia tudo é uma ciclovia enorme. Uma vez uma baleia morreu encalhada na praia, foi arpoada por um grupo de pescadores, que a expuseram no centro da praça depois que ela morreu, botaram os ossos para todo mundo ver, era uma baleia jubarte, e de pensar nela os olhos de Kurt enchiam-se de lágrimas. Chegou a perguntar uma vez o porquê de deixarem ela ali, mas ninguém respondeu e mandaram ao invés disso, ele parar de falar. A aula ia começar e tinham as meninas em volta, os meninos perto do gol, ele quase chorando porque ia ter de ficar até depois porque a professora disse que ninguém passava a bola para ele mas ele também não ajudava ele não corria e nem se esforçava e precisava ficar até depois mesmo recebendo aquela bronca porque nunca viu alguém ser tão fingido no quinto ano ele só chorava e também chorava no sexto sétimo oitavo nono primeiro e eu nunca vi alguém tão mentiroso e dissimulado igual a você agora me responde o motivo de você não ter amigos. Eles disseram que ela tinha razão quando ele chegou em casa e contou o que houve. Kurt chorou. Estava sozinho.

Falou com Mel sobre isso, e sentiu o corpo inteiro querer colapsar por cima de si mesmo quando o fez. Era um esforço tamanho aquele que Atlas faz para carregar o mundo — o de estar sozinho era pior. Perceber que você está sozinho é um baque muito difícil. Ainda mais quando você tem quinze anos, e esse pensamento chega depois do que aconteceu comigo. É uma devastação a longo prazo. Como quando inundam uma floresta, e toda a vida que lá existia antes passa a habitar nos buracos, nos leitos, entre as raízes. A vida demora para voltar. Mas quando você tira a água, seca o lugar, também demora para sumir. Primeiro, os mais dependentes da água morrem, como girinos, salamandras, cobras d'água. Os mosquitos não eclodem mais, os sapos não comem mais, as cobras também não. Sinto que comecei a sumir quando esse pensamento me achou, mas não fui de um todo o primeiro a morrer, e também não sei explicar o que morreu primeiro. Foi igual ser aniquilado aos poucos. Elas ajudaram a me matar. Deve ser por isso que sou assim, meio morto, meio vivo. Ouvi como somos incêndios, mas sinto que sou mais um boneco de pano. Entreguei o desenho para ele esta tarde. Escureceu. Fomos para mais uma sessão. Ele estava atrás da mesa, ouvindo falar sobre a minha vida sub-humana, sobre como a sopa não tinha mais gosto, sobre como as lâmpadas eram todas brancas, sobre o cachorro atrás da cerca — e o seu nome? Qual era o seu nome? —, sobre os ônibus, sobre o número quarenta e dois e sobre o quarenta e seis, sobre a água fervente que desce pelo corpo e não encontra nervos na pele. Era isso o que existia. Uma vida sub-humana. Eu entreguei os desenhos naquele dia, duas metades de folha de caderno, com tudo o que eu estava sentindo. E ele botou na gaveta. Fico feliz em ser seu boneco de pano. Ao menos teve serventia. Mas você não pode pensar assim. Por quê? Uma época dessa não precisa ter serventia. Dizem que te faz mais forte, mas você se sente mais forte? Eu me sinto novo. Mas o tempo passa diferente. As pessoas estão à minha volta, vivendo, sendo felizes, vivendo a vida delas. Eu estou catando meus cacos. Mas me sinto novo, sim. Não como a xícara cor de nuvem. Eu não tenho cor de nada. Nem uma camisa azul? Nem uma camisa azul.

— Eu me sinto transparente — disse, olhando o mar. Mais uma vez, viam as jubartes. Não sabia se Mel responderia: havia tempo que tiveram a conversa. Ainda assim, ponderou: — Todos podem me ver e saber o que eu penso.

— Eu não sei o que você pensa — Mel ainda fitava as baleias, embora tivesse na voz a entonação de quem vê o horizonte e perde os olhos na queda do mar.Quis dizer que era difícil saber, mas permaneceu quieta.

— Quando você vai pintar uma baleia? — ele perguntou.

— Depois do homem e a casa amarela. Isso se ainda gostar delas.

— Eu gosto.

Era estranho. Tinham se visto pela primeira vez e, de repente, desciam a rampa juntos, primeiro a de madeira, depois a de concreto, então a de metal. Estavam na areia, vendo o oceano quebrar na areia. Os siris corriam até seus buracos. Se ele tivesse tudo no mundo, poderia olhar para Mel e entender o que queria dizer com a concha em sua palma estendida, pois não teria sobrado qualquer preocupação além daquela — vê-la à beira da praia, de frente para o mar, com o robe ora branco feito a espuma, ora vermelho feito o céu. Mudava como um camaleão. O tecido cintilava, e o dia se punha. Kurt não pegou a concha; admirou-a por todo o tempo que tinha.

— Mas orcas não são baleias. Elas são curiosas e gentis. As pessoas que não entendem.

Ainda não entendiam — acuavam-no contra a parede e prendiam-no numa sala, e lá ele via o sol descer e o pátio encher, as crianças brincando, e as duas não paravam de enchê-lo de perguntas. Mas ao tentar se lembrar se havia levantado para sair — e metido o pé na porta — ou se havia ficado na cadeira, encolhido feito um bicho, suando rios e torrentes pelas mãos, chorando com a alma, pedindo a Deus para ir embora dali, vinha à memória, ao invés disso, a sensação de que nada daquilo importava. Elas não o deixariam sair da sala. Nem que chorasse para Deus ou pedisse um milhão de perdões. Havia sido onde a manhã começava ou acabava? Laranja ou amarelo? Luz ou penumbra? A sala do piano ou a sala ao lado da sala que era ao lado de outra sala e de outra sala e depois vinha a mesa e Mel estava na praia, olhando as estrelas, contando-as por toda Órion e por toda Cão-Maior. Quando terminou de botar o dedo no último ponto brilhante e virou-se para Kurt, ele já estava na sala novamente. Não adiantava querer ter pregado o chute na porta; tudo o que havia feito foi querer — tanto e muito e com toda a força — que seus pés tocassem o chão.

❖❖❖
Notas de Rodapé

e sangue.

Apreciadores (1)
Comentários (1)
Postado 07/05/25 22:43

Blood, sweat and tears. Minha parte favorita foi "O hambúrguer é mais feliz quando está na vaca.". Me tirou um sorriso sincero em um dia merda :) .