Cabeça de Burro
Holzwarth
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 04/06/25 22:44
Editado: 04/06/25 22:45
Gênero(s): Fantasia
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 4min a 5min
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Comentários: 1
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Palavras: 652
Não recomendado para menores de catorze anos
Notas de Cabeçalho

A linguagem me deixa louco.

Capítulo Único Cabeça de Burro

O que é isso?

Uma cabeça de burro.

Uma cabeça de… burro. Uma cabeça de burro.

Em minha casa não tem janelas. Roubaram janelas dessa casa. Eu sonhei com essa casa. É a minha casa e de meu irmão. Eu sonhei e ela não tem janelas. Os vinhedos roubaram as portas e chegaram quando você imaginou a casa e sentiu a casa no fundo da floresta macia, onde pastam os unicórnios multicor.

Você esteve sonhando com essa casa. Ela esteve sonhando com você também. Essa casa esteve sonhando com você, roubaram as janelas dessa casa. Roubaram as janelas, ela só tem uma porta, mas os vinhedos roubaram as portas, e ficou apenas uma. De cima da árvore, não, da outra; não, daquela outra; não, daquela ali; não, a adiante; não, essa; não, essa; não, aquela outra; não, essa não; não. É, essa. Ali. Ouça:

— E o seu irmão? — perguntou o urubu. — Quero ver o seu irmão. Onde está seu irmão?

— Não te interessa.

A ave feia crocitou de cima da árvore:

— Tomara que o cachorro te coma, maldito.

Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro.

Veio vindo pela porta e quase já não era mais nada quando mergulhou na escuridão do corredor. Apareceu na porta, banhado pela luz (nauseante) do topo do teto, e viu que era grande como um arranhacéu. Vermelho. De voz doce e mansa. Chegou abrindo a boca:

— Meus dentes são de titânio — disse o cachorro. — Quer ver?

Abriu a bocarra para ele, que se encolheu.

— Não, valeu.

— Mas eu quero te morder.

Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de burro Cabeça de b

Urro.

Cabeça de burro.

Ele vai te morder.

Eu sei.

Na minha casa não tem janelas onde tem palmeiras onde cantam os sabiás onde estão os pássaros e as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Tenho a cabeça de burro. A cabeça de burro. É um retrato da cabeça de burro. Na parede. Um retrato da cabeça de burro pelas paredes, por todas as paredes. Um retrato da cabeça de burro por todas as paredes da minha casa sem janelas.

Ela sonha com você também, esteve sonhando a vida toda. Esta casa esteve sonhando com você, e você esteve sonhando com ela. Os unicórnios comem a grama que nasce entre os vinhedos. Os vinhedos comem a grama que nasce entre os unicórnios. A grama come os unicórnios que vinhedam entre o nascer. Veja:

No fundo de uma cama um boneco de cera. Um boneco de cera no fundo de uma cama pendurado na parede. Uma pintura do boneco na parede — mas! É uma pintura pintada, oval, com moldura. Uma foto, uma pintura, uma fotografia. Sem janelas. Uma pintura do boneco de cera sem as janelas — os olhos? Da alma! De nada. Ali os unicórnios! Agradeça:

A sua casa branquinha e todos os móveis branquinhos pequenininhos que dentro dela você parece um gigante. Mas é casa? E se for? É que ali você não pode morar, quem disse, eu disse, quero voltar, não pode, mas você não gostou quando eu saí você me viu e você quis chorar eu não te quis fazer chorar eu quero falar sobre as tulipas, vai dormir feche as janelas, eu sei, então fecha, pronto fechei. Sinta:

Os unicórnios galopando pelas colinas, os unicórnios sabem quem somos, os unicórnios de plástico sabem quem somos, eles sabem quem nós somos, entre os vinhedos e as árvores, manchados de uva, sem janelas na floresta macia. Maquiavélicos monstros! É a casa! Ela não tem janelas! Mas e a cabeça de burro? Faz-se silêncio no camarim. Ele tem quatro olhos, o irmão tem só a cabeça — e vai sangrar até morrer.

❖❖❖
Notas de Rodapé

É uma obra dadaísta

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Comentários (1)
Postado 02/07/25 12:18 Editado 02/07/25 12:20

Devo dizer que tenho meus receios com produções dadaístas (vide Oswald tentando ser dadá), mas o resultado foi bem diferente do que imaginava. Você incorpora brilhantemente o central do movimento: a destruição.

Se mensagem é não ter mensagem, então, ironicamente, se tem uma mensagem. Escrever algo desta tipagem é desafiar a lógica da arte e de toda nossa compreensão da linguagem como "constituiva na nossa cadeia de pensamentos". Não somos tão racionais quanto queremos parecer e este pensamento é, novamente... fruto de uma racionalidade. É difícil escapar do que somos ou melhor do que pensamos ser? Eis, portanto, o brilhantismo de seu texto: não entendo, ao menos completamente, as sequências, mas pouco me daria vantagem entendê-las; o crucial é sentir o sujeito (nós, ele e você) em relação ao objeto (a cabeça de burro) e perceber que não se trata do horror, do terror, do estranho, mas do abjeto, como bem conceitualiza Kristeva.

Foram bons minutos pensando e relembrando ele, especialmente focado nos dois últimos parágrafos. Belo texto!

Postado 05/07/25 19:25

Destruição da linguagem, do sentido (por extensão, do sentido das coisas), dos personagens, da voz, de tudo que se tem como literário... Acho um tanto difícil pensar no dadá por causa disso, é a mensagem que não é uma mensagem, mas que sempre vai ser uma, independente do que aconteça. Ler o dadaísmo também é complicado; gostar dele, mais ainda. As pessoas (num geral, como público leitor (???)) tiram o dadaísmo do caminho. Acredito que seja porque querem estar cientes de tudo o que acontece no mundo, seja em seus pequenos mundos mentais, onde o cosmos é perfeitamente organizado como a palavra sugere em seu significado, seja em seu grande mundo físico, em que tudo o que as cerca está conectado da devida maneira possível, necessária e bastante. A confusão no não entender pode e é assustadora para muita gente. Imagine não ter chão! Ou não ter onde se segurar numa queda infinta! Medonho.

Cabeça de Burro era para ser outra coisa antes, porém me desafiei a fazer algo que se aproximasse do dadaísmo, porque estava com uma frase, a frase das notas, na cabeça — é uma obra dadaísta. Fui escrevendo, reescrevendo, cada vez tirando uma parte, mudando um pouco, adequando ao que eu queria de fato contar. Tem uma história. Ela está nos últimos parágrafos, como bem observado, e talvez por não ter usado a palavra "hotel" o simbolismo tenha ficado um pouco difícil de distinguir; é uma casa branca, com tudo branco e pequeno, com um garoto malformado que a habita e, de repente, sai, porém não viverá o suficiente nem para chorar. De início, não era sobre isso, mas se tornou ao longo do texto, porque falar do pesadelo que originou Cabeça de Burro não é de bom tom nem nas narrativas mais tensas (e tem pouco valor... ao menos aqui).

Nem sei explicar o que é a cabeça de burro, se é uma máscara (plausível), se é uma cabeça decepada de um burro (também plausível), se é uma cabeça decepada de um ser humano burro (igualmente plausível), se é uma cabeça com ideias constantemente burras (da mesma forma, plausível), enfim. Fico feliz por ter entendido a minha proposta e apresentado um insight certeiro. Muito obrigado pelo comentário!