Sal e chuva
Ana Clara
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 30/03/21 21:50
Editado: 05/07/21 19:54
Gênero(s): Cotidiano Romântico
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 6min a 9min
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Palavras: 1087
Livre para todos os públicos
Notas de Cabeçalho

Texto para o OPMP de março, mês da música brasileira. Minha música é "não passa vontade" (das anavitória e duda beat), sugerida pela Lika. Me inspirei especificamente nesta parte:

"Se tu demora, o dia acaba e faz chover

Eu tô querendo te abraçar faz tempo

Eu quero tanto levar você pro mar

Pra a gente se banhar

Deixar meu beijo no teu beijo

E namorar colado, até o sol cansar

De ficar acordado"

Boa leitura!

Capítulo Único Sal e chuva

— É sério, pra onde tá nos levando?

Tentei soar severa, mas meus lábios se repuxaram num sorriso discreto. Não fazia diferença, realmente. Poderíamos ir à sorveteria da esquina, pegar um ônibus para a cidade vizinha ou fugir para nos aventurar numa escalada. Eu toparia de qualquer forma, só não deixaria de lado minha teimosia.

— Para de ser chata! É surpresa, já disse. Vem!

Lívia me puxou para o carro e eu apreciei quando, após colocar uma mochila — com sabe-se lá o que dentro — no banco de trás, ela tirou seus óculos de sol presos no decote e os vestiu num momento que pareceu daqueles em que a vilã impossível de se odiar chega para salvar os mocinhos. Ela ainda girou as chaves do gol surrado como se fossem as de uma lamborghini. Sua pretensão era notável, mesmo que estivéssemos andando numa lata velha que morria em toda subida, ela abria o peito para esbanjar confiança.

Passei a viagem toda fingindo ansiedade para saber nosso destino, mas a conhecida estrada repleta de palmeiras e o cheiro de sal impregnando em minha pele a dedurou. Seria minha última opção se tivesse que escolher, mas estava com saudades de nossos passeios mirabolantes, então não me incomodei tanto quando saí do carro e a areia esfarelou entre minha pele e a sandália.

— Quanto tempo não venho à praia... — O vento gelado nos recebeu e me arrependi de não ter levado um casaquinho. — Estou precisando mesmo de muito sal pra tirar as energias negativas de mim.

— Devia ter trazido uma plantação de arruda pra esse seu banho então, as coisas não estão muito boas pra você, né... Sua mãe me contou.

Ah, foi por isso, afinal, que ela tinha preparado aquele descanso.

— Queria falar que me mandaram embora por ter socado o idiota do meu patrão, mas foi apenas corte de gastos. Eu fui pro banheiro e chorei, e é ridículo pensar que passei os últimos dois anos falando que odiava aquele lugar. Bom, odeio mais ainda não estar lá.

Quase pedi desculpas pelo desabafo, mas, no final das contas, ela estava mais curiosa para escutar do que eu estava disposta a falar voluntariamente. Foi uma troca justa quando ela me ofereceu de volta só um aceno em compreensão e fez um carinho em meu ombro. Não queria receber nenhuma consolação além daquela. Qualquer conselho soaria mesquinho, qualquer motivação seria falsa. Eu não era tão incrível para um emprego não me merecer e, provavelmente, não havia nada melhor esperando por mim. E não havia problema em estar tudo errado sem uma perspectiva de melhora tão próxima. Embora fosse confortante essa ideia, precisava encarar que as coisas ruins não aconteciam para abrir caminho para as boas. Às vezes elas simplesmente aconteciam, sem nenhuma razão.

Ela reconheceu meu tormento e o respeitou.

Caminhamos em silêncio até o mais próximo possível do mar para estendermos a canga que ela tirou da mochila secreta. A garoa de mais cedo devia ter espantando a todos, só havia nós duas no meio do frio e do nada.

Ela me serviu seu biscoito exclusivo de polvilho feito na sanduicheira e, quando mesmo depois de minha aprovação — não falsa, mas um pouco omissa sobre estar levemente cru — ela não parou de mexer as mãos inquietas, tive que perguntar:

— Aconteceu alguma coisa? — Apesar de minhas próprias preocupações, jamais a negaria os ouvidos.

— Que foi? Nada, ué.

Continuei a encarando, sem esconder que iria insistir numa resposta. Ela pegou outro biscoito, mas o colocou de volta no pote.

— Tinha algo que queria conversar com você antes, mas agora, com você passando por isso, não sei se é o melhor momento. — Como se qualquer pessoa não fosse curiosa o suficiente para responder só "ok, depois você me conta então”. — Agora que mencionei tenho que terminar, né? — Claro que tinha.

— Claro que tem. — Ela tinha conseguido bolsa em outra cidade e estava se preparando para ir embora? Iria terminar comigo? Foi, na verdade, incrível a quantidade de pensamentos e possibilidades que se criaram e se reformularem em minha cabeça nos segundos até ela voltar a falar.

— Sabe, não vou fazer suspense, nem drama, já fiz muito hoje. Você quer casar comigo? Estava pensando nisso, sei que era um plano pro futuro, mas por que não agora? Sério. Pensei num pedido grande e tudo mais, só que não queria te sujeitar a humilhação pública de sair no jornal como namorada que foi pedida em casamento por um balão temático no meio da rua. Cheguei a contratar o serviço, mas não sei se você ainda acha pedidos de casamento bregas. Ainda posso fazer isso, se quiser.

— Eu quero. — Minha euforia implodiu, as sensações invadiram todo meu corpo, ser humana se tornou estranho de repente, tudo que deveria ser normal e inconsciente fez questão de me lembrar de que eu estava viva. O coração batia tão rápido e forte que era constrangedor, e, ao mesmo tempo que minhas mãos suavam frias, senti minhas orelhas tão quentes que agradeci por estar com os cabelos soltos. Tomei consciência de minha respiração e precisei escolher as palavras, como se estivesse aprendendo a falar outra vez, mas, além da voz talvez trêmula, nada que estava dentro de mim escapou. — Quero me casar com você. Não o pedido em público — respondi com a serenidade que não tinha no momento.

Ela sorriu tão bonito que, juro, eu poderia falar não, só para depois dizer sim e vê-lo de novo. E foi sua vez de implodir, observei a forma com que se reteve em si mesma, seu corpo escondia sob calma o instinto de sair desenfreado levando junto tudo ao redor. Era o mar lutando contra si próprio.

A água bateu em nossos pés e ela passou os dedos pela areia molhada, sorrindo fácil e doce. Levantei-me e a ofereci minha mão.

— Quero tomar um banho de sal, vamos.

— Olha esse tempo, Manu, tá gelado. Nem trouxemos outra roupa. — Apesar de contrariada, aceitou minha mão e me deixou puxá-la até que o mar cobrisse nossos joelhos. Contra seus protestos, bati a mão água, que respingou em seu rosto e ela abriu a boca em indignação.

— Não passa vontade então, palhaça! — Muito ligeira, fez sua mão de concha e despejou sobre meu cabelo toda água que conseguiu segurar, e eu não deixei isso barato.

Quando o dia perdeu a paciência e fez chover, nós sequer percebemos.

Eu sempre tinha as piores ideias. Mas só pensei nisso depois, quando acordamos com narizes entupidos e gargantas inflamadas.

Resfriada e desempregada, estava, pelo menos, muito bem noivada.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Obrigada por ler <3

Apreciadores (2)
Comentários (2)
Comentário Favorito
Postado 10/05/21 07:46

Me deixou com um sorriso estampada!

Valeu!

Postado 29/05/21 21:53

Fico feliz por saber disso, muito obrigada pelo comentário!! <3

Postado 31/03/21 20:21

eu fiquei simplesmente presa na sua história até terminar, e quando acabou fiquei com aquela cara de boba de "por que já acabou, tava tão bom"

eu amei!

Postado 25/04/21 20:36

aaaa fico tão feliz por saber que gostou, muito obrigada mesmo pelo comentário!! <3 <3