(O que era aquela coisa?
Aquele brilho, aquela
falta?
Eu a via entre o que não existia
e o que não desejava existir.
Ou talvez sequer isso.)
I
Não saberia dizer onde nasci
ou quando me dei conta de onde estava.
Mil horizontes se apresentavam aos meus olhos,
com mil sóis mais pálidos que minha própria vontade;
e eu tentava,
eu lutava,
ao menos até onde entendia o que era lutar,
até onde qualquer significado
ou coisa
pudesse algo.
Naqueles horizontes eu pensava
que devoraria cada sol
caso soubesse que queimaria com eles até o pó.
Mas então olhava para mim:
eu não possuía boca,
por mais que desejasse gritar,
por mais que quisesse mastigar
cada pedaço de mim.
Talvez a houvesse devorado para aplacar a própria fome.
II
Não sei por quanto tempo vaguei,
ou se vaguei sequer.
Sequer sei se havia um tempo.
Cada passo era um quase mergulho
onde qualquer coisa tentava me naufragar.
Ali eu sentia uma matéria que não era minha,
uma penumbra que não vinha de mim ou para mim,
mas na qual não poderia deixar de estar.
Não sei se era pegajosa aquela coisa,
não sei se fedia ou se cheirava,
se qualquer parte dela era algo além dela mesma,
se escondia ou revelava,
nutria ou matava,
curava.
Sabia,
talvez,
que estava enegrecida pelo que absorvia,
e o que absorvia era tudo…
e que me prendia,
puxava…
Mas eu não afundava ali.
Às vezes ouvia lamúrias de um outro lugar,
talvez mais profundo,
talvez mais que a mim mesmo.
Mas eu não as entendia.
Eu não sabia.
III
Os céus não eram céus.
Haviam bocas plantadas em cada nuvem
que nem sequer flutuava,
apenas desejava,
arregaçada a amaldiçoar.
Elas se abriam implorando,
aquelas goelas,
sua saliva tombava desfazendo o que quer que fosse
e ainda assim nada chegava às suas entranhas.
Eu as via,
entendia apenas por olhar.
Como eu,
elas também desejavam devorar algo,
nem que fosse um sonho nunca tido,
um coração,
uma coisinha de nada,
ou menos.
Devorar-me?
Era impossível.
No firmamento haviam tantas fendas
que pareciam guardar algo.
Talvez ninguém nunca houvesse visto
o que quer que fosse aquilo:
entre cada pedido,
talvez cada oração,
a cúpula celeste estava manchada em vermelho,
em feridas e dentes,
pus e línguas,
e qualquer coisa ainda pior.
IV
Mas então aconteceu…
Não saberia dizer quando foi que percebi
qualquer coisa além daquilo tudo:
além dos lagos de um fogo enegrecido,
além das vinhas de carne podre
e dos caminhos de perdas incontáveis.
O que era aquela coisa?
Aquele brilho, aquela
falta?
Um mundo tão branco,
tão desprovido,
que nem sei se era mundo.
A coisa não era coisa,
mas eu a via entre o que não existia
e o que não desejava existir.
Ou talvez sequer isso.
O lugar de nascimento
ou de morte,
de certos objetos translúcidos
como eu.
Eu não sabia
se nele poderia entrar,
como a ele poderia chegar,
quais coisas não eram dentro de si,
e se eu mesmo não seria ainda menos…
ainda menos do que já não era.
Eu apenas percebia,
muito além dos lagos de fogo enegrecido,
aquele lugar nenhum.