As luzes no laboratório de Susana piscaram, como olhos cegos por um clarão.
Mas o clarão era pura sombra, e alagava os cantos ascéticos e equipamentos pesados, seguido por um tremor contido que fez os tubos e placas de vidro tilintarem.
Não era fácil tirar o sério do Senhor dos Condenados, como Susana racionalizou no momento em que ouviu os sensores de intrusão dispararem. Mas se ela possuísse bexiga e calças agora, uma estaria vazia, a outra enxarcada.
- É claro. – a voz rabugenta porém computada derramou-se num eco quando a figura negra se materializou nas câmeras do laboratório. – Mais uma atrocidade.
- Pensei que fosse gostar, sendo o Diabo e tal. – a resposta de Susana veio dos alto falantes nas paredes. – Aliás, foi você quem pagou por esse filactério de íntegro-isolamento neural.
- Ah, então tem até uma referência hebraica para acompanhar a baboseira técnica. Onde estás, Susi, querida?
- Estou bem aqui.
Uma batida sonora, seguida pelo zunido de bombas a funcionar, fez Lúcifer olhar para o teto, onde havia pendurada uma câmara grande e oval. Na lateral da câmara, lâminas circulares formadas por uma fina malha flexível se deformaram para fora, como se algo pesado empurrasse o tecido.
Um braço apareceu para fora das lâminas. Depois, outro. E, então, uma cabeça perfeitamente lisa que portava uma inconfundível semelhança à doutora Susana Mahler.
Quando o torso se libertou, o peso do corpo úmido foi suficiente para trazer as pernas para fora da câmara, e para dentro de uma piscina de um líquido transparente viscoso.
Segundos depois, a doutora Susana emergia e se apoiava às bordas da piscina, entre engasgadas e tosses, a vomitar o líquido. Sua expressão não disfarçava a dor intensa que a bombardeava dos pés à cabeça.
Lúcifer bateu palmas devagar.
- Bravo, doutora! – disse após um assovio. – Foste cagada por um cu metálico gigante. Ora se não é um feitio para os anais, se me perdoa o trocadilho.
Susana deu mais tossidas e balançou a cabeça. Abriu os olhos de devagar. Tecnicamente, via a luz pela primeira vez.
Tentou falar, porém os músculos mal obedeciam. Era mais difícil do que havia antecipado.
- Passos de bebê, hein? – Lúcifer zombou.
- Mas que maldição...
- É o primeiro pensamento a passar pela cabeça de todo recém-nascido, estou certo.
- Ah, cala a boca. Deus, dói como um filho da... – Susana forçou-se para fora da piscina, centímetro por centímetro. Usou um par de barras para se erguer no piso escorregadio, plantando os pés com cuidado.
Lúcifer estudou o corpo nu de Susana.
- Nada mau, madame, nada mau. Mas eu duvido que o indivíduo lá no Céu aprovaria isso tudo.
- Aposto que não... – Susana engoliu com dificuldade e tomou fôlego. Andou trêmula até um armário, resmungando algo sob a respiração árdua.
- Não costumas resmungar, querida. Tu terás de falar mais alto.
- Eu perguntei... como é... ser derrotado de novo?
- Hmm. – Susana viu a boca de Lúcifer se retorcer em total indignação. Ele ainda não sentia ódio, apesar de tudo. Isso, por sua vez, indignou a ela. – Machuca ou pouco e está ficando repetitivo, mas também não precisa ser tão grosseira. Então, me diga. Por quanto tempo pensas que pode continuar essa brincadeira?
Susana terminava de abotoar sua blusa com a ajuda de um assistente mecânico, quando voltou-se para encarar a besta.
- Até o fim da porra do universo.