Caçada Sombria (Em Andamento)
Sabrina Ternura Co-Autores Mr Black
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Tipo: Romance ou Novela
Postado: 17/10/21 02:36
Editado: 02/06/23 16:41
Qtd. de Capítulos: 6
Cap. Postado: 04/01/23 23:24
Cap. Editado: 02/06/23 16:41
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 26min a 35min
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[Texto Divulgado] "Apenas o momento " Luísa foi ao bar sozinha o que pode ser muito bom ou muito ou muito gostoso
Não recomendado para menores de dezoito anos
Caçada Sombria

Esta obra participou do Evento Academia de Ouro 2021, indicada na categoria Fantasia.
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Capítulo 6 O Garoto Sem Reflexo

Os meus nove anos vividos até agora pesam sobre mim como se equivalessem a uma vida inteira. Meu corpo alcançou um estágio de exaustão semelhante ao atingido pelos idosos perto do fim de suas jornadas, quando as pernas rangem para caminhar, os olhos se demoram nas piscadas e os pulmões trabalham mais lentamente. Todo esse sofrimento parece ter consumido a vitalidade de anos de existência que ainda não fui capaz de desfrutar, porém sei que estou fadado a suportar: minha sina é sobreviver para sofrer na pele cada uma das formas de morrer. Jamais esquecerei das longas noites em que o ronco do meu estômago esfomeado foi recebido pelos meus ouvidos como uma canção de ninar, enquanto as minhas poucas boas lembranças transformavam-se em uma manta que me aquecia durante o inverno. Como não lembrar dos socos, pontapés, tapas e chicotadas que me arrancaram o sangue, a dignidade e, por vezes, a consciência? Pensei que sentir a morte devorando minha pele, meus ossos e minha alma fosse a sua mais pavorosa conjugação. Todavia, me enganei: pior do que ser atingido pelo padecimento é causá-lo.

Encaro as minhas próprias mãos trêmulas tanto pelo balançar da carruagem quanto pelos eventos do dia anterior e concluo que estas são as mãos de um assassino. O cheiro de lavanda e suor que emana de meu corpo, são os odores de um assassino. Esse casaco caro, essas botas engraxadas e essa calça bem passada são as vestes de um assassino. Esse rosto pálido e quase esquelético compõe a feição de um assassino. Esse sorriso doentio que insiste em enfeitar meus lábios é a manifestação da verdade: sou um assassino.

Matar é, também, uma forma de morrer.

Me sinto velho e cansado, mas, acima de tudo, me apavoro com a ausência de culpa que insiste em não me preencher. O grande vazio parece ter se tornado imenso, pois não consigo mais enxergar o seu horizonte.

Minha sombra amiga desapareceu.

Minha mãe morreu.

Minha alma escureceu.

Sobrou apenas eu...

Enquanto a própria solidão me abandona, encaro os cenários que surgem e somem com o andar da carruagem que está me levando para a Mansão Warlock que, segundo seu proprietário, será meu novo lar. O homem que está sentado em minha frente tagarela sem parar acerca do meu extraordinário poder e o quanto ele será favorável em minha jornada como hunter. Após matar de formas indescritíveis todas aquelas pessoas, pela primeira vez em muitas horas, sou tomado por um sentimento ao ouvi-lo engrandecer a Mancha Negra: um repúdio tão palpável que minhas palavras saem embargadas dele.

— Essa porcaria que fede a merda não é extraordinária, é uma maldição e está me matando. — Interrompo-o.

O Colecionador coloca o corpo para frente e, após juntar as pontas dos dedos sem encaixá-los, afirma com certa satisfação:

— E, ainda assim, você não é capaz de morrer.

— A pior existência é aquela que não termina, senhor Warlock. — Respondo com um misto de incredulidade e aversão.

O homem me encarou, intrigado. Em seguida, me questiona:

— Se você não pode lidar com a sua escuridão, não seria mais fácil aliar-se a ela?

— E me tornar um assassino? — Rebato sem pestanejar.

— Todos os seres humanos são assassinos em certa medida, Blake. Crianças matam suas mães durante os partos, homens caçam e matam animais, mulheres se vingam de seus agressores, rebeliões acontecem e inúmeras mortes mancham a terra. O próprio conceito de justiça pode ser entendido como assassinato, pois, de um lado, há as leis e, do outro, os fatos; se há a execução da justiça, alguém padece e se há a execução dos fatos, também.

— E o que o senhor acha que devo fazer, já que o destino da humanidade é matar e morrer? — Questiono-o com sarcasmo.

— Acho que você deve parar de acreditar que é o pior ser humano do mundo por ter ceifado a vida de todas aquelas pessoas ontem. Eles mereciam morrer, Blake, e a própria Deusa deixou que você executasse a justiça dela! — Atalhou o homem com certa intensidade. Após se acalmar, prosseguiu: — A única forma de sobreviver neste mundo é simples, minha criança: em vez de ser sempre quem morre, você pode se tornar aquele que mata.

_______________________________________________________

Dois anos depois…

Não importa quanto tempo se passe e o quanto minha memória seja excelente: ainda me perco pelos corredores da grande casa que tem seus cômodos mudados de lugar de acordo com a vontade do senhor Warlock, através da manipulação de um objeto de distorção de espaço-tempo extremamente raro que ele insiste em não me falar o nome, mas que não me interesso tanto em saber. No entanto, uma das poucas coisas que o Colecionador me contou sobre esse mecanismo mágico de segurança diz respeito ao seu objetivo de não só protegê-lo, mas, principalmente, guardar a sete chaves os seus tesouros caçados que ficam guardados no Corredor das Mil Portas. Um dos primeiros conselhos que ele me deu antes mesmo que eu adentrasse a sua residência foi justamente no dia de minha chegada, quando recebi a primeira das minhas 101 missões: uma das maiores qualidades de um hunter, jovem Blake, é entender que, melhor do que caçar, é não permitir ser caçado pelos outros, por isso, saiba se esconder. A proposta da missão era simples: eu deveria encontrar o meu quarto após os locais se alterarem. Lembro-me que a achei relativamente simples, porém foi um grande erro subestimá-la, tendo em vista que passei longos dois dias sem dormir e comer por conta deste teste.

Desde o início, quando o senhor Warlock começou a me treinar, eu sabia que não seria fácil, porém desde a quinquagésima missão as coisas passaram a complicar em proporções imensas. Durante a sexagésima quarta missão, por exemplo, na ânsia de terminá-la e facilmente encontrar o objetivo dela em cima do meu travesseiro (a peça da rainha do tabuleiro de xadrez), simplesmente ignorei meus instintos e, como consequência, um buraco se abriu no chão e despenquei em um abismo de escuridão por duas horas seguidas. Certamente tive que escalá-lo depois, o que levou quatro longos dias para acontecer. A cada nova missão, eu descobria uma nova maneira de errar, mas a perfeição não era esperada de mim: o objetivo do Colecionador era trazer à tona os meus erros para conhecê-los, sondá-los e, por fim, moldá-los com o intuito de convertê-los em destreza e agilidade. Ainda assim, eu não queria cometer nenhum erro nessa fase final por puro orgulho.

Mesmo que minha perna direita esteja levemente dormente por estar esticada e o meu joelho esquerdo esteja tremendo por estar flexionado por conta dos longos quarenta minutos que estou nessa mesma posição, eu sabia que não poderia ousar me mover, pois todo o ambiente mudaria novamente de lugar. Fecho os olhos e respiro profundamente, buscando limpar a mente e me focar no objetivo desta última missão: encontrar a entrada do Corredor das Mil Portas. A verdade é que, depois de correr pela mansão, tentar não ser esmagado pelas paredes e ficar parado por longos minutos em posições desconfortáveis, o meu corpo clamava por descanso, assim como a minha mente. Contudo, ainda que eu esteja embriagado pelo cansaço, não consigo deixar de ouvir o clamor do meu instinto, que me diz que há alguma coisa errada. As coisas parecem estar fora do lugar mais do que o normal, além da quantidade de partículas mágicas que pairam sobre o ar e que intensificaram-se a cada avanço meu.

Movo lentamente a cabeça e observo o ambiente. Por eu ter deixado de me mover, as paredes pararam de mudar de lugar durante uma transição, desta forma elas se encontram atravessadas de modo diagonal no chão, como se fossem diversos fragmentos de um espelho que havia acabado de ser golpeado. Os móveis também estão em posições alteradas: há poltronas na vertical e na horizontal ao longo das paredes entrelaçadas, algumas mesas estão repartidas ao meio — enquanto uma metade está no chão e a outra no teto — e alguns objetos estão dentro uns dos outros. Foi em meio a esse caos geométrico que notei uma curiosa imagem: um vaso vermelho está atravessado dentro de um espelho, como se estivesse adentrando um novo local, diferentemente de todos os objetos que observei. O mais curioso disso, no entanto, é a ausência de reflexo do vaso no espelho. Diante dessa observação, meus pulmões começam a se encher de ar com violência, dada a ansiedade crescente. E se uma das peculiaridades desse mecanismo de distorção de espaço-tempo for, justamente, criar uma ilusão em sua entrada para que ninguém descubra onde o Corredor das Mil Portas está? Talvez esse pensamento fosse um tiro no escuro, mas a ideia pareceu-me extremamente atrativa.

Todavia, quando começo a seguir o rastro das partículas mágicas com os olhos, percebo que as mesmas perdem a intensidade conforme se aproximam do espelho. Arqueio a sobrancelha, intrigado, pois não faz sentido que ali seja a entrada para o Corredor das Mil Portas e, ao mesmo tempo, seja o local com menos magia, afinal de contas certamente o senhor Warlock fortaleceria a entrada e… Instantaneamente interrompo-me e me recordo de um conselho dado por ele durante um dos poucos jantares que fizemos juntos: um bom hunter é aquele que sabe se esconder dentro de uma mente fraca. Talvez, só talvez, a baixa quantidade de partículas mágicas fosse proposital, tendo em vista que alguém desatento descartaria o espelho pensando que a entrada estaria com encantamentos poderosos que acumulariam muita magia e, automaticamente, uma enorme quantidade de partículas mágicas. Se eu estiver certo acerca disso, então há outra questão: se não há magia, então o espelho deveria ser quebrado na força bruta e não com um encantamento?

Um tremor de exaustão forte o suficiente para dobrar meu joelho direito me tira de meus devaneios e noto que, se eu não ouvir os meus instintos agora, vai ser ainda mais difícil me movimentar com a destreza que gostaria. Além disso, não há motivo para tanta reflexão, afinal quando eu me mover, tudo começará a mudar de lugar. Portanto, não é preciso focar tanto em como chegarei até o espelho, mas, sim, no que fazer quando estiver diante dele.

Fecho os olhos e respiro fundo, buscando mover lentamente os músculos de meu corpo sem movimentos bruscos para não causar uma mudança no ambiente, quase como se estivesse o avisando do que viria a seguir. Ao abrir os olhos, encaro o espelho como se o mesmo fosse o único objeto existente no local e começo a me mover. Apesar de sentir algumas fisgadas que vagam pelo meu corpo como faíscas de um relâmpago, sinto-o leve, como se já estivesse acostumado com esses impulsos quase masoquistas. Conforme avanço, desvio de diversos obstáculos sem sequer olhá-los, mesmo que eles se movam velozmente e sabendo dos riscos de ser esmagado ou gravemente ferido caso um deles me atinja. Noto a minha mente mergulhada no vazio, completamente submersa em alcançar a minha meta e friamente despreocupada com as consequências de meus atos impensados, quase como se eu tivesse me tornado capaz de congelar meus medos e conseguisse abraçar meus instintos como um pai que acolhe seu filho recém-nascido.

Parecia que eu estava começando a aceitar sem medo a frieza obscura que mancha a minha alma…

Parecia que eu estava finalmente me encontrando, mas, ao mesmo tempo, me perdendo e isso me deixou amedrontado…

Porque quando você encara o abismo do âmago, ele te mastiga e te engole com um prazer embargado de satisfação,

Já que a solidão assusta mais do que a escuridão.

Quando me encontro a poucos centímetros do espelho, arqueio a sobrancelha ao notar que não consigo vislumbrar o meu reflexo no mesmo, porém essa possível confirmação de ele é um portal surge diante de meu olhos e desaparece mais rapidamente do que uma arfada de ar em dia frio. Subitamente, o ambiente se transforma e diversos espelhos começam a surgir por todas as direções, mas não só: o espelho sem reflexo que outrora estava diante dos meus olhos, agora está distante e devidamente protegido pelos demais espelhos. Dois deles, um vindo pela direita e outro pela esquerda, quase me atingem, porém consigo saltar a tempo do ataque não ser bem sucedido. Assim que o choque de ambos acontece e diversos cacos de vidro surgem, percebo que os fragmentos passam a flutuar em minha direção. Corro rumo ao espelho sem reflexo, enquanto, atrás de mim, ouço o som dos estilhaços que se formam conforme outros espelhos se chocam, criando uma nuvem de cacos de vidro.

Em dado momento da perseguição, um espelho surgiu do chão. Meu primeiro movimento foi virar o corpo com o intuito de atingi-lo com meu ombro, porém, em uma fração de segundos, ouço meu instinto me dizer para não destruí-lo, mas, sim, para desviar. O faço rapidamente, quase escorregando no processo por conta de meu corpo mal posicionado, e me surpreendo quando a nuvem de cacos de vidros adentra o espelho. Tal fato me faz ter quase certeza que, se os espelhos com reflexos são portais, logo, não podem ser destruídos, então o espelho sem reflexo pode ser apenas uma barreira natural que pode ser quebrada na força bruta.

Percebo que meu objetivo continua no mesmo lugar, ainda que o ambiente tenha se tornado uma espécie cúpula de espelhos assassinos. Corro, corro e corro, diminuindo cada vez mais a distância entre nós, apesar de perceber que os cacos não me dilaceram mais do que a exaustão física. Tento manter o ritmo, ainda que pareça que meus músculos lutam para funcionar e meus pulmões se esforçam para respirar.

Assim que retorno ao ponto inicial, a poucos centímetros do espelho sem reflexo, verifico se o mesmo se move e constato que não. Viro-me e começo a correr de costas, visando reduzir danos futuros: seria imprudente atingi-lo com os ombros, por isso penso que fazê-lo de costas é o melhor caminho, já que não sei o que me espera após a passagem e não posso simplesmente golpeá-lo por causa da nuvem de cacos de vidros que ainda me persegue. Olho de realce e noto que meu objetivo está perto, portanto acelero ainda mais, para que um único impacto seja o suficiente para quebrá-lo.

Sinto minhas costas tocarem a superfície e a mesma começar a se desfazer no instante em que o toque brusco ocorre, enquanto observo uma nuvem imensa diante de mim, pronta para me atravessar no instante em que eu parar de mover meu corpo. Alguns cacos me cortam de raspão, enquanto outros me perfuram superficialmente, fazendo com que um verdadeiro espetáculo de estilhaços e sangue aconteça. Todavia, assim que o espelho se quebra completamente, meu corpo é engolido por um vazio desconhecido, enquanto a nuvem de cacos de vidro começa a se agrupar, transformando-se em um novo espelho, só que dessa vez sem reflexo. Assim que o último estilhaço se mescla com a superfície lisa e polida, meu corpo atinge o chão e, para a minha surpresa, não sinto outros cacos de vidro me perfurando.

Levanto-me, olho ao redor e constato que estou em um longo corredor com diversas portas enormes, uma ao lado da outra, diferenciando-se apenas pelos desenhos talhados na madeira. Tochas se estendem pelo local, iluminando-o. Vindo de dentro das portas, ouço gritos, lamúrias, cânticos… sons que eu jamais havia escutado e segredos que talvez jamais desvendaria.

No entanto, assim que dou um passo, sinto uma fisgada de dor tão intensa que cogito a possibilidade de morrer para que a mesma pare. Assim que abaixo os olhos para verificar o que está acontecendo, sobressalto-me: há um estilhaço de vidro atravessado na minha barriga. O choque da descoberta, assim como a exaustão de meu corpo, faz com que eu tombe até a parede mais próxima buscando o apoio que minhas pernas já não mais oferecem. Coloco as mãos sobre o causador de minha desgraça, sentindo que o mais sutil movimento pode me fazer perder a consciência caso precise lidar com uma nova pontada de dor. Até esse momento, eu apenas havia sofrido mortes que tiveram como gatilho elementos emocionais, porém nunca tive um ferimento potencialmente mortal. Entretanto, a ideia de morrer, subitamente, pareceu-me atrativa: e se uma morte acidental realmente me fazer morrer?, penso com certa esperança.

O sofrimento do padecimento se espalha por todo o meu corpo, fazendo-me suar frio, mas não consigo deixar de sorrir ao pensar na ideia de alcançar o meu objetivo. Embora o abraço da morte seja sôfrego, aquela dor, apesar de aguda, era mais suportável do que a que senti em todas as minhas outras mortes: era, de certa forma, reconfortante saber que apenas eu conheceria o fim, sem levar ninguém ao inferno desesperador da morte comigo. Deslizo o corpo pela parede, seguro com força o pedaço de vidro e respiro profundamente com certa dificuldade: nesse momento, percebi que era preciso ter muita coragem para morrer. Mesmo sem a valentia necessária, deposito as últimas forças que me restam nas pontas dos dedos e retiro o causador de minha possível libertação. Após um grito de dor, ainda que minha visão comece a ficar turva, vejo uma quantidade mortal de sangue escorrer do ferimento, assim como sou tomado por uma letargia jamais sentida outrora. Fecho os olhos com a mesma satisfação de alguém que busca descanso em sua cama após um dia exaustivo e chego a conclusão de que a morte só não é mais fria do que o coração de pessoas ruins, mas definitivamente é mais obscura que a maldade de alguns.

Subitamente, tudo escureceu,

A dor desapareceu

E sobrou apenas eu…

_______________________________________________________

Mas a morte sempre seria um fragmento da minha escuridão…

Quando aquele frio desolador tomou todo o meu corpo e meu coração bateu pela última vez, eu não esperava o desespero cruel que me aguardava. Não sei quantos minutos, horas ou dias se passaram… Só sei que a eternidade que havia naquela profunda e cortante solidão me engolia e me fazia gritar apenas para ouvir algo além de meus pensamentos desesperados; me fazia soluçar de tanto chorar para que eu não vislumbrasse o meu desalento… me fazia querer não poder morrer de nenhuma maneira, mesmo desejando isso, porque pior do que contemplar a morte, é afundar na própria solidão.

— Blake! — Ouço, de repente, a minha sombra amiga me chamar exasperadamente, rasgando por alguns segundos o tortuoso vazio no qual eu estou imerso.

A voz dela, que tanto havia me trazido conforto em meus dias mais tristes, soou aos meus ouvidos ensurdecidos pela dor do silêncio como um bálsamo de ternura.

— Você precisa acordar… — Ela prosseguiu, tocando meu rosto com uma gentileza que quase me partiu em pedaços.

E mesmo engolidos pela escuridão, eu a vi. A “sombra” agora tinha cabelos, olhos, braços, pernas e outras características que não pude contemplar por conta da dor que fazia meu corpo agonizar.

Ela tornou-se alguém, bem ali, dentro da minha dor.

Ela, que ficou em silêncio durante anos dentro da minha alma, surgiu quando mais precisei e menos mereci.

Ela, apenas ela: uma estranha sem nome que parecia conhecer cada batida de meu triste coração.

Mesmo sem entender, ao vê-la ali, senti vontade de abraçá-la e contar a ela sobre cada um de meus medos escondidos — que insistiam em chamar de instintos —, sobre cada uma de minhas mágoas — que se convertiam em um ódio que me matava — e sobre cada um de meus receios que pareciam ecos dentro de meu peito oco. Antes, eu havia dito que ela era a luz que brilhava na minha escuridão, mas talvez essa tenha sido a designação mais equivocada que tive: ela não resplandecia em meio as minhas sombras, mas por não temer a minha escuridão, ela a acolhia e não se importava em estar ali por mim.

— Blake, você não pode mais fazer isso, porque vai ser sempre muito doloroso, mas desse jeito… vai ser muito pior.

Ela pronunciou cada uma das palavras como se as mesmas fossem capazes de feri-la e, repentinamente, aquilo partiu o meu coração. Ela também batia compulsivamente em meu peito enquanto chorava, como se o gesto pudesse despertar o órgão consumido pela morte ao mesmo tempo em que parecia me alertar de que meu destino era a morte, mas o suicídio com certeza sempre seria o pior destino que eu poderia escolher, porque através dele a potência da minha solidão me torturaria além do suportável.

Blake? Você está me ouvindo? — Repentinamente ouço um eco baixo e longínquo da voz do senhor Warlock.

— Você vai acordar! — Ela exclama com felicidade, enquanto toda a escuridão ao nosso redor começa a se dissolver e passo a sentir que minha alma está sendo puxada de volta.

— Mas e você? — Pergunto em desespero, segurando as mãos dela, como se isso fosse me impedir de partir. — Quando eu vou te ver de novo?

Ela segurou o meu rosto com as duas mãos e, mesmo imerso no caos do limiar entre a vida e a morte, eu me senti estranhamente calmo ao vê-la sorrir.

— Sempre estarei dentro do seu coração e até eu te alcançar, prometo não ir a lugar algum.

As palavras dela me soaram familiares, como se eu já as tivesse escutado em algum momento, porém não consegui respondê-la, pois comecei a ser puxado de volta a realidade. O meu corpo todo arde e os meus órgãos queimam, dando a impressão de que tudo havia sido forçado bruscamente a funcionar de modo repentino. Ainda estava escuro, mas não mais assustador, pois há essa certeza reconfortante percorrendo cada aspecto do meu ser: ela conseguia me alcançar em meio a minha desolação.

_______________________________________________________

Desperto.

Sinto o oxigênio preenchendo os meus pulmões com uma violência descomunal, enquanto acostumo os olhos novamente com a luminosidade. Diante de mim, encontra-se o senhor Warlock, com um misto de terror e preocupação em seu semblante. Ainda sinto a dor no local do ferimento e instintivamente levo uma das mãos para o local, no entanto, não há mais resquícios do mesmo, apenas uma cicatriz em formato de redemoinho e um leve desconforto. O Colecionador suspira fundo e tomba o corpo para trás, encostando-o na outra parede, como se houvesse passado por momentos de grandes adversidades.

— Eu sou um homem de crenças, mas dificilmente as temo. — Explicou ele. — Só que hoje, jovem Blake, você me fez repensar algumas coisas.

— O que aconteceu? — Pergunto com um pouco de dificuldade, enquanto me acomodo ainda mais no que parece ser uma parede destruída, como se a mesma fosse uma grande e confortável cama.

— Você concluiu a centésima primeira missão e, de alguma maneira, morreu por conta do ferimento logo após isso. Só que… — O senhor Warlock começou a dizer, mas interrompeu-se. O vi engolir em seco e o mesmo prosseguiu, com a voz embargada de receio: — Após isso, o seu cadáver começou a caminhar pelo Corredor das Mil Portas procurando por algo, mais especificamente a porta que está atrás de você, enquanto deixava um rastro de sangue abundante para trás… — Ele novamente se silenciou, como se algo mais perturbador do que o narrado fosse ser dito a seguir. — Até que você chegou diante desta porta e ela simplesmente se abriu para recebê-lo, como se estivesse o esperando. Isso nunca havia acontecido antes…

O Colecionador parou de falar por alguns segundos, como se estivesse sendo perturbado pelos próprios pensamentos, o que me deu tempo de olhar para os lados e realmente constatar que um enorme rastro de sangue se estendia e sumia até a curva do corredor. Me viro, ainda sentado, e observo a imensa porta atrás de mim: há diversas figuras talhadas e embaralhadas, mas é perceptível que se trata de algo relacionado ao vento, tendo em vista que todos os elementos ali presentes parecem remeter a isso.

— O intuito era, desde o início, fazer com que você chegasse até esse local através das missões para escolher uma das portas e, qualquer que fosse o artefato dentro da mesma, ele se tornaria seu, sem que fosse preciso você passar pelo desafio imposto. — Revelou repentinamente o senhor Warlock. — Só que eu não esperava que você escolheria justamente essa.

— E o que tinha dentro dela? — Questiono com curiosidade, torcendo para que eu tenha escolhido uma porta com uma arma extremamente poderosa.

— A garrafa com os Quatro Ventos de Éolo. — Ele me responde com certo temor.

— Uma garrafa? — Pergunto com total incredulidade. — O que diabos eu vou fazer com uma maldita garrafa?

— O problema não é o uso, Blake, mas, sim, o que ela é capaz de fazer e o que aconteceu quando você a tocou. — Disse bruscamente o senhor Warlock.

— Eu a quebrei? Porque não tenho dinheiro algum ou talentos de hunter para colocar outra no lugar. — Digo com um tédio e ironia palpáveis, o que faz o homem me olhar com reprovação.

— Ela entrou dentro de você. — Ele revela repentinamente.

Pisco exatas três vezes, completamente perplexo. Com trinta infernos, como ela entrou?, penso com certo desespero.

— A cicatriz na sua barriga é um sinal mágico de que você agora é o portador da garrafa. Foi pelo seu ferimento que ela entrou. — O Colecionador esclarece e, prossegue dizendo, em um sussurro levemente aterrorizado: — Quando aquela mulher apareceu, eu pensei que você ia morrer.

— Mulher? Que mulher? — Questiono em um sussurro, enquanto olho para os lados para confirmar que não há ninguém além de nós dois.

Ele se aproxima de mim de joelhos e me segura pelos ombros. Mesmo assustado pela aproximação repentina, mas mais ainda pela atitude estranha do senhor Warlock, não consigo deixar de notar o quanto essa situação o deixou completamente aterrorizado. Ele engoliu em seco mais uma vez e, após olhar repetidas vezes para os lados para confirmar se realmente estávamos sozinhos, ouço-o sussurrar:

— Ela… a Senhora da Escuridão.

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