De garoto problemático ele havia se tornado herói, não um que almejava a salvação da humanidade, mas aquele que prezava pela vida do seu próprio mundo. E foi esse o pensamento que me veio à mente ao olhá-lo parado em frente ao portão do colégio focando o nada... O nada que havia tornado sua vida. Se todos soubessem o que havia se passado com ele teria sido diferente?
Semanas antes ninguém se preocupava, Gabriel era apenas um desconhecido que foi escolhido e marcado pela sua estranha mania de sair correndo quando as aulas se encerravam. Ninguém sabia o porquê; ninguém sabia sobre ele. Tão calado, o garoto não conversava com ninguém, poucos sorrisos e palavras trocadas era sua única comunicação, o que o tornou uma vítima fácil para os populares que queriam descontar suas frustrações ou simplesmente se divertirem às custas de suas humilhações constantes.
O que havia de errado com Gabriel? A resposta era tão óbvia que ninguém conseguia enxergar. Tudo estava errado.
Todo dia era a mesma cena, a mesma humilhação. O garoto chegava cinco minutos atrasados para no final cair no chão por acidentalmente ter um pé em seu caminho, atraindo diversos olhares e risadas, todavia, nunca um auxílio. Apesar disso, nunca o vi chorar ou descontar sua raiva.
Era sempre o mesmo silêncio.
O mesmo vazio no olhar.
A mesma correria na saída.
Porém, foi naquela tarde que o inevitável ocorreu. Paulo e seus colegas acharam que seria demasiado engraçado se retirassem o grosso moletom que Gabriel sempre usava, na tentativa de expô-lo mais que o normal, afinal, as brincadeiras já estavam velhas, tinham que inovar.
Ninguém havia sido preparado para aquela visão. O corpo antes oculto e nunca revelado do garoto era coberto por algumas tatuagens aleatórias, aparentemente sem sentido. Mas o que chamou a atenção foi o grande ponto e vírgula ao lado de uma âncora situados em seu peito.
O quão estranho deveria parecer?
Mais xingamentos foram desferidos assim como suposições de sua sexualidade. Era cansativo e doloroso, mas novamente ninguém fez nada para ajuda-lo ou parar aquela situação.
Eu não fiz nada.
Gabriel, diferente das outras vezes quando mantinha a mesma expressão vazia sem demonstrar sentimentos ou irritação, encontrava-se com um olhar desesperado, tentando a qualquer custo se desvencilhar de todos para apenas ser empurrado brutalmente no chão.
“A bichinha estranha já quer fugir e correr pra casinha, é? Olha essas tatuagens, que homem marca o peito dessa forma?! É um escroto mesmo, não me admira que saia correndo todo dia!” – risadas foram ouvidas, algumas de nervoso e outras por puro divertimento, até que a diretora chega para saber o que ocorreu, abrindo uma brecha para Gabriel se levantar e correr para fora da escola. Era mais um dia normal. Era mais um dia que riam dele quando o viam sair correndo após o fim das aulas.
Era o mesmo ciclo. Até aquela tarde.
No dia seguinte Paulo se encontrava no portão da escola para começar sua diversão matinal, mas Gabriel não apareceu. Nem aquele dia, nem no próximo e nem pela semana inteira. O que era estranho, afinal, ele nunca faltava.
A explicação veio posteriormente, assim como o silêncio que remetia ao arrependimento. Era uma tradição, quando algo acontecia com algum familiar de qualquer aluno, a diretoria intervia quando necessário e comunicava os demais para que todos mostrassem solidariedade.
Foi nesse momento que as coisas se esclareceram.
A mãe de Gabriel sofria de depressão e se automutilava devido os anos violentos passados ao lado do ex-marido, sua irmã mais velha ficava no período da manhã ajudando em casa para que a tarde e noite pudesse trabalhar e sustenta-los. Havia um intervalo de uma hora que Dona Martha ficava sozinha, e por isso Gabriel todo dia corria após o término das aulas.
O garoto apenas queria ter certeza que sua mãe estava bem e impedi-la de atentar contra a própria vida. E ninguém nunca havia entendido... Até aquele dia.
Quando Gabriel retornou às aulas uma semana e meia depois ninguém ousou sequer falar algo. Não havia nada a ser dito. Ninguém sabia o que dizer. Todos os dias eram o mesmo ciclo de xingamentos, humilhações e agressões, todavia, não houve ao menos um dia que algum aluno perguntou como foi o dia ou se precisava de ajuda.
Ninguém lhe ofereceu a mão. Muitos silenciavam a tentativa de auxílio por mais que quisessem mudar o comportamento alheio, e entre o desejo e a realização há uma linha tênue complexa envolta de suas consequências.
Nesse dia, ao final das aulas, toda a atenção era focada ao garoto de uma maneira diferente. Todavia, Gabriel não correu como sempre fazia, ele apenas baixou a cabeça e passou pelo portão, caminhando lentamente pela calçada. Foi assim que a percepção do que ocorreu submergiu.
Era tarde demais.
Dias se passaram após o ocorrido e nenhum aluno teve coragem para perguntar aquilo que já sabiam. Ninguém mais ria ou faziam piadinhas. Paul surpreendeu a todos ao abraçar Gabriel e pedir perdão por tudo que causou. Mas nada amenizaria o arrependimento que cada um carregava dentro de si.
No mural se encontrava todas as redações que a professora pediu aos alunos, e uma delas se destacava ao meu olhar. A redação de Gabriel.
“Não sou a pessoa forte que minha irmã julga que sou, ou aquela pessoa que me tornei no decorrer dos últimos anos fingindo não ter sentimentos ou ignorando toda a situação a minha volta. A verdade é que eu sentia tudo. Toda a dor, toda a humilhação, a realidade de não possuir amigos. Mas nada se comparava a ligação com minha mãe. Eu podia suportar enquanto a tinha e via seu sorriso de alívio quando eu chegava em casa.
Ela ainda tinha medo de ser abandonada.
A âncora significa firmeza, segurança e convicção, e era isso que eu queria mostrar a minha mãe, que apesar de tudo estávamos seguros e firmes; essa foi a minha primeira tatuagem. Quando a mostrei foi o primeiro dia que a vi gargalhar e chorar de alegria, e foi quando ela me contou a história do ponto e vírgula.
Os professores ensinam que o ponto e vírgula é a pausa em uma frase que não termina; nossa vida era assim, você pode parar, mas sempre deve continuar. E essa foi a minha segunda tatuagem.
Antes que eu percebesse usei o meu corpo como um escape da realidade, onde as palavras de incentivo pudessem ser marcadas e lembradas, assim como as coisas que não poderiam ser ditas. Meu corpo se tornou um mapa seguindo padrões de uma história a ser contada.
O tempo passa e tudo se transforma, mas essa história se eternizará tanto em minha alma quanto em meu corpo. E aqui cito e deixo marcado a minha conclusão:
O suicídio não ocorre quando alguém causa uma overdose ou dá um tiro na própria cabeça, mas sim quando o coração vazio permanece vazio. Quando a alma morta permanece morta. Talvez seja uma conclusão errada. E sinceramente? Não me importo.
A única coisa certa que fiz foi amar e cuidar dela enquanto me foi permitido.”
Se todos soubessem o que havia se passado com ele teria sido diferente?