O gato e o assovio da faca.
LAVENDER
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 08/04/18 19:11
Editado: 08/04/18 19:37
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 4min a 6min
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Não recomendado para menores de catorze anos
Capítulo Único O gato e o assovio da faca.

Não me recordo da exata superfície sobre a qual o gato do mato tirava um sono àquela tarde, só do resto da geografia: situava-se no pé da Argentina, em Santa Cruz, no perímetro de um rancho, a propósito, o mais próximo da geleira Perito Moreno, uma das mais imponentes das muitas que o Parque Los Glacieres possuía nos seus limites. Acima do rancho, o céu era branco com manchas cinza de chuva, impedindo absolutamente o sol de tocar o solo, no qual a terra estava úmida e a pedra, seca.

No meio da tarde, quando o sol caía, uma única nota de assobio bastou para acordar o gato, aquela que fez parecer que o animal tinha despertado de um pesadelo, de tão sensível que eram os ouvidos dele. O felino, que provavelmente estava no fim de um bosque dentro dos limites do rancho, ligou o som com o de um passarinho e, quando aguçou mais ainda seus sentidos, percebeu que o provável passarinho vinha com um homem montado numa bicicleta, que rapidamente estacionou na casa do senhor do rancho. Sindrômico igual era, o gato armou um plano para apanhar o passarinho do homem e retornar aos seus sonhos.

Antes que o animal pudesse fazer alguma coisa para sanar sua síndrome que se ampliava gradativamente a um estado constante e permanente, o senhor do rancho abriu a porta e liberou passagem ao homem, o qual se despediu com um aperto de mão e montou na sua bicicleta, pedalando até um caminho contíguo ao bosque.

Em direção à próxima casa que demandava seu serviço, o homem foi distraído por um ruído que pareceu vir de uma bergamoteira. Em seguida ao curto sentimento de apreciação e espanto ser exaltado implicitamente por ele, de trás do pé de bergamota, revelou-se um gato do mato branco manchado de pintas amarelo-queimado, que logo transpareceu muito sociável:

- Boa tarde, humano. - miou o gato.

- Muito Boa. Também acho.

- Que animal é esse que tu montas?

- Isto? – disse redundante o homem - Ah, tu enganas-se. Não é um animal, é o meu veículo: uma bicicleta, um meio de transporte inventado pelo homem. Um homem lá da China, já ouviste falar? Do Oriente?

- Não. Que frutas nascem nessa tal de Oriente, humano?

O afiador de facas entrou na brincadeira:

- Minha bicicleta por exemplo.

- E qual o propósito deste cilindro entre os galhos dessa fruta? É uma espécie de caroço?

- Não, não. Nada a vê – disse apontando para o afiador fixado no guidom - Isto é um mecanismo que afia facas. Eu sou um afiador de facas, ou amolador.

O gato do mato, quando ouviu aquilo, sobrecarregou sua mente com interpretações equivocadas sobre um afiador de FACAS ser chamado um dia depois das filhas do senhor do rancho alegarem ter sido ameaçadas por um suposto gato silvestre perto do bosque, mas logo depois da paranóia passar, uma ideia perversa e genial acendeu na sua mente.

- Afiador? Suponho então que exercias esse oficio no casarão que saíste agora pouco.

- Exatamente, é o que eu faço para ganhar a vida. Afio facas e facões, derivados disso.

Os ossos do gato tremeram e sua alma se fragmentou, enjoando o organismo do gato, o qual só não caiu morto porque sua síndrome o fortaleceu.

- Afiarias uma coisa pra mim?

- Desde que eu seja pago.

O gato daria qualquer coisa para ter bolsos que nem os cangurus naquele momento. Olhando ao redor, o animal ofereceu o pé de bergamota.

- Serve. – respondeu de bom grado o afiador.

- O que queres que eu afie?

- Minhas garras. Seria de ótima ajuda.

- Venha cá então. Perto do rolo de afiação.

Debruçada e estendida a pata do animal, o afiador de facas fez o que prometeu: caprichosamente e de impecável feitio, as garras do gato podiam ser confundidas com navalhas ao fim da afiação. O bichano, que ficou o tempo todo sentado no guidom da bicicleta, examinou as novas garras com um olhar subentendido e felino.

- E então, vale toda uma bergamoteira mesmo?

- Vale mais. – Ao proferir isso, o gato do mato pulou no pescoço do afiador de facas com suas lâminas gritantes e, sem precisar empurrar e forçar suas garras dentro da carne, riscou uma linha fina horizontal na altura do gogó do homem, pela qual jorrou uma cascata de sangue até o corpo fraquejar e o crânio ser rasgado pelo rolo de afiação da bicicleta.

Quando o corpo e a bicicleta fundiram-se em um só, o gato do mato procurou o passarinho nas roupas molhadas de sangue, mas só encontrou um apito que o afiador usava para anunciar sua chegada.

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Postado 25/09/18 21:59

Como sempre, inovando com as ideias mais mórbidas e trazendo através das mesmas uma grande moral. A riqueza de detalhes que encaminham o leitor ao final, é deveras impactante (literalmente).

Parabéns pela obra!

Postado 26/09/18 15:26

Obrigado pelo comentário tão póstumo hahah

Feliz que alguém tenha aterrissado aqui depois de tanto tempo Isso só prova que esse site é uma biblioteca mesmo.

Postado 30/05/18 18:55

Estou adorando o seu trabalho, principalmente pelas "plot twist's" (em Imoral também), por serem tão ricas com detalhes, e pelo toque morbido também.

Uma fabula bem inusitada.

E a moral da historia não tire conclusões precipitadas/ não julgue pela aparencia.

Postado 24/11/18 13:37

UAU! Eu nunca ia pensar que esta obra era tão boa! Parabéns! Amei esse gato por sinal... Um bom demônio das estradas rurais eu diria... Por algum motivo, imaginei-o com tons alaranjados e marrons no pelo. Que hsitória sensacional! Parabéns mesmoooo

Postado 14/05/19 12:16

Interessante, tanto na descrição como no conteudo. Uma obra inusitada e curiosa, com um humor deveras negro ao meu ver.