Antes da Primeira Marca:
A simples visão e ligeira compreensão de quão longe estava da abertura do poço fez Ternura suar frio e suspirar em plena descrença: não via como ela poderia, em um primeiro momento, chegar até o topo. Ela era pequena, franzina e ainda por cima estava sentindo aqueles efeitos físicos esquisitos. Definitivamente não era a hora de sequer tentar a escalada, então a menina decidiu averigar melhor onde estava e o que tinha à sua disposição.
Com a ajuda dos vagalumes que pairavam pelo recinto, a infante podia visualizar um pouco melhor as paredes que a circundavam, constatando que eram constituídas de grandes blocos de granito, provavelmente úmidos ou recobertos com limo em boa parte da extensão do local. Em um ou outro ponto, existia uma marca ou pedaço faltando, como se tivesse sido golpeado por algo ou alguém. Ela poderia se utilizar disso a seu favor, ao menos no começo.
Verificou com mais calma e atenção a gruta adjacente ao poço após trocar suas vestes pelo pequeno e confortável traje de treinamento que seu tio preparou especialmente para ela. Reparou que tinha algo entalhado na rocha e forçou a vista para poder averiguar melhor o que estava escrito ali:
Cognosce te ipsum. Ipsum intelligere. Ut per ipsum. Et non obliviscaris.
Pablo
Diablair
- Conheça-te. Compreenda-te. Supera-te. E jamais esqueças. - traduziu Ternura em voz alta e solene, grata pelas aulas de latim que tivera com a tia Mei e a Flávia. - Pela Deusa Afogada, acho que o tio Diab treinou aqui também! Vai ver que por isso ele escolheu este lugar... "Pablo"? Tio Pablo?! O "Mestre/Irmão" do meu tio a quem conheci há pouco tempo atrás? Os sulcos do nome dele são diferentes e parecem mais antigos, ele deve ter sido o primeiro de nós a vir aqui...
A menina repetiu o que estava escrito na parede mais duas vezes, como se quisesse gravar aquilo não só na mente, mas em seu coração. Voltou então sua atenção para as águas logo à frente enquanto começou a refletir no que faria e como faria, lembrando dos treinamentos que via seu tios fazer e de tudo o que estava em jogo. Depois de um período considerável de tempo pensando, lembrando e se decidindo, Ternura foi até o jardim de cogumelos, comeu alguns (cada um tinha um gosto vagamente bom e desconhecido) e apanhou uma pedra mais ou menos pontiaguda. Em seguida, rumou até a parede rochosa onde estavam as palavras entalhadas e começou a marcar seu próprio nome logo abaixo do de Diablair.
Por fim, em outra parede, fez um curto risco vertical: ali se iniciava a contagem de dias de seu próprio treinamento no fundo do poço.
Trigésima primeira Marca:
Ternura finalmente sentiu pela primeira vez a sensação de peso corporal e falta de ar diminuírem (teorizou que a gravidade desse tal Reino Irregular Sombrio era ligeiramente maior, por isso sentia-se mais pesada mesmo sendo daquele tamanho), o que a confirmou que seus esforços ao se dedicar à natação diária por horas a fio não havia sido em vão. No começo foi extremamente extenuante, mas ela não se deu por vencida e insistiu até conseguir de fato nadar nas águas do poço. Não podia negar que a sensação reconfortante que sentia dentro d'água a ajudou a suportar os rigores dessa parte do treinamento. Mas, ela não se limitou a isso.
Ternura sabia que, cedo ou tarde, teria que enfrentar Diablair e ainda estava devendo a ele dois socões na boca: um pelo seu tio e outro por ela mesma. Todavia, ela não sabia lutar. Então a menina começou a praticar os movimentos básicos de artes marciais que ela viu vez ou outra seu tio fazer em seus treinos no último ano. Pelo menos os poucos que ela lembrava. Sabia que os movimentos e a postura deviam estar meio feios ou até errados, mas era melhor do que nada. A criança gostava de imaginar que seu tio Diab estava do seu lado, ensinando cada gesto, bradando cada repetição, incentiavando e até dando bronca nela quando inconscientemente fazia corpo mole. Às vezes, tais mentalizações a faziam sorrir. Em muitas outras, a manobra era realizada em um sussurro e com o olhar marejado.
Ela precisava continuar.
A infante também passou a meditar (isso ela aprendeu direitinho com a sua tia) e refletir continuamente sobre si mesma e seu papel na Trindade. Tentava acessar seja lá quais poderes tivesse, mas nunca chegou nem perto. Talvez ainda não estivesse pronta para esse estágio, mas não custava tentar. Mas, a parte mais dura era resistir à solidão sem ficar com vontade de chorar, pois parecia que quanto mais o tempo passava, mais pesaroso se tornava seu coração. Jamais sonhou em ficar longe de casa por tanto tempo e sentia uma falta imensa de sua família em cada mínimo aspecto, além de estar muito preocupada com todo mundo. Era deveras horrível não ter notícias nem com quem conversar e ainda tinha pesadelos com o que ocorrera antes. Aliás, nunca mais tivera um sonho sequer: somente ocasionais pesadelos. E ao acordar, para seu recorrente pesar... Ainda estava dentro de um.
Quadragésima quinta Marca:
Era a primeira vez que a jovem em treinamento tentaria escalar e comprovou que não era algo nem um pouco fácil, ainda mais sem experiência, equipamentos ou sequer iluminação. Ternura não controlava os vagalumes, mas eles pareciam sentir as dificuldades da criadora e agiam espontaneamente de acordo, provendo alguma iluminação aqui e ali. De toda a forma, não havia muitos, pois eles foram sumindo com o passar do tempo, então Ternura estava por conta própria para descobrir onde e como se apoiar. Agradeceu à Divina Brina por ter água ali embaixo, pois isso permitiu que seu corpo se fortalecesse para encarar tal desafio, além de fornecer proteção em caso de queda.
A alegria de Ternura não durou muito: em um determinado momento ela acabou escorregando e caiu gritando de uma altura de cerca de vinte metros, esfolando o queixo, os dedos e um dos joelhos antes de afundar na água. Foi o primeiro de incontáveis tombos que ela tomaria para, de modo exaustivo e doloroso, poder ir traçando uma rota rumo ao topo. Fora o cansaço que a subida lhe causava, havia também a questão mental: precisava ter foco e silenciar as vozes autossabotadoras em sua cabeça cada vez que subia. A primeira e longa queda livre por intermédio de Diablair também não ajudou muito seu psicológico, então cada nova tentativa era realmente um desafio a mais. E um novo fracasso.
Mas ela não desistiria. Nunca.
Quinquagésima oitava Marca:
A partir daquele dia, Ternura considerava que tinha encontrado a rotina ideal entre natação, treinamento de golpes, meditação, tentativas de escaladas e quantidade de descanso, bem como saber com mais exatidão onde e como se dependurar e o melhor jeito de subir, dependendo de onde estivesse agarrada. A sensação de peso e falta de ar ainda perdurava, embora muito menos rigorosa que outrora. Estava progredindo pouco a pouco e ficou ainda mais feliz quando percebeu pela primeira vez que, em um determinado ponto mais acima, havia alguns blocos mais salientes com as palavras "100 M" gravados em sua superfície e formando um semi círculo no trajeto. Com toda a certeza, quando alcançasse uma daquelas pseudo plataformas, poderia fazer uma pausa e recuperar as forças para continuar subindo.
Tal descoberta animou Ternura de tal maneira que ela sentiu-se renovada e tratou de escalar o mais rápido que pôde até um dos blocos. Todavia, logo após o inglório percurso, mal ela subiu no bloco e ouviu um urro longo e inumano que reverberou por todo o lugar, seguido de sons que lembravam passos acelerados como as batidas de seu coração quando ela viu Diablair correndo de modo perpendicular em sua direção enquanto parecia arrancar um dos espinhos das ombreiras. Sem crer nos seus próprios olhos, Ternura vislumbrou com terror aquele maldito sorriso se formando enquanto a haste metálica se tornava um machado que ele arremessou nela a cerca de quinze metros de distância.
O objeto rodopiou em uma velocidade absurda em busca da cabeça da menina, que não teve opção senão pular da plataforma para tentar evitar a decapitação. Mesmo assim, o fio da arma fez um belo talho em seu ombro esquerdo antes dela despencar de novo para o fundo do poço. Conforme ela caía, a gargalhada demoníaca de Diablair parecia afundá-la mais e mais. E então a água acolheu a agora chorosa garotinha, que pranteava não tanto pela dor, mas por ter sido privada de seu primeiro grande sucesso de modo tão célere e brutal.
Ao sair da água, ela passou a mão na ferida e, com os dedos manchados com seu próprio sangue jurou novamente que iria sair. E, com o coração pesado, foi tratar o ferimento com musgo e pranto mal contido. Daquele dia em diante, uma espécie de batalha começou a ser travada entre a menina e seu hediondo anfitrião: a duras penas, Ternura descobriu que a cada cem metros que subisse, Diablair a atacaria com uma machadada. A ideia, pelo que ela entendeu e embora não parecesse de jeito nenhum, não era assassiná-la, mas uma espécie bizarra de teste pelo direito de ficar ali.
Seu treino alcançara um novo nível de sofrimento, mas ainda assim... Ternura não desistiria.
Centésima quadragésima nona Marca:
Devido à fatores como quantidade de tempo para se recuperar dos eventuais ferimentos que sofria (mesmo cuidando deles com o musgo) e também o do exigido para alcançar os patamares, Ternura achou por bem reduzir as tentativas de escalada. Ela até superou a sensação horrível que a queda lhe causava (independente da altura, agora era até divertido cair na acolhedora água) e finalmente estava pegando o jeito de se desviar sem ter que cair ou se afastar muito do bloco. Também notou (um tanto tarde, na verdade) que os espinhos nas ombreiras de seu "tutor" não eram infinitos e restavam poucos agora, provavelmente uns quatro ou cinco. Decrescer seu número lhe custou vinte e sete cicatrizes, mas uma vez que eles acabassem, em tese tudo ficaria bem. Ternura sem perceber estava sorrindo: faltava pouco para ela sair dali!
Centésima sexagésima segunda Marca:
Mesmo com um corte na coxa esquerda, várias escoriações e trinta cicatrizes pelo corpo, bem como um cansaço inédito, aquela era a primeira vez que Ternura enfim chegara ao sexto patamar, já se preparando para o vociferar animalesco e o provável último machado que seria arremessado contra ela. Um misto de expectativa e apreensão a tomou de imediato, mas os segundos se converteram em minutos e um bom tempo passou sem que nada de anormal ocorresse. Foi então que ela ouviu algo que a machucou bem mais do que todas as machadadas e tombos que sofrera até então: os longuínquos gritos de dor de seu tio. Ela nunca tinha ouvido aquilo antes, mas não teve dúvida alguma de que aqueles brados altíssimos de sofrimento eram dele. Era como se ele estivesse sendo... Sendo assassinado do modo mais lento e impiedoso possível.
Ternura resistiu bravamente à vontade de chorar, pois lembrou do que leu na carta e sabia que seu tio estava de algum modo muito doloroso impedindo que aquela coisa malevolente fizesse o que bem entendesse com a sua sobrinha. Para que ela ficasse forte. Para que ela sobrevivesse.
Ela podia lidar com Diablair tentando derrubá-la, mas aqueles gritos que simplesmente não paravam... Aquilo acabou com ela...
- Mestra... Mãe...! Por favor, me ajude! Não a ignorar o sofrimento do meu tio, mas para seguir em frente apesar disso! Eu... Eu... - a voz de Ternura falseava, assim como suas pernas na plataforma quando ela cogitou retormar a escalada. - Eu... Preciso ir!
Invocando toda a força de vontade e concentração que adquiriu a duras penas durante todos aqueles dias de treinamento, a menina tornou a escalar. Seu braços e pernas estavam pesados, o corpo todo doía um bocado e o coração, mais ainda. Os últimos sessenta e seis metros exigiram foco total da sua parte e pareciam mais difíceis de serem galgados. Tudo era tão escasso, mas já podia sentir as lufadas de vento em sua cabeleira castanha. Faltava tão pouco! Cinqüenta metros. Quarenta. Trinta. Vinte. Uma tremedeira nos braços a fez deslizar de volta para os quarenta metros. Esfolou a mão esquerda, mas conseguiu manter-se agarrada ao paredão. Subiu de novo. As pernas estavam no limiar de uma cãimbra aos trinta metros. Ignorou, forçou a barra, continuou subindo. Quinze metros. A entrada do poço parecia tão grande! Tão próxima! Mordeu o lábio quase ao ponto de cortá-lo, não iria comemorar antes da hora. Seis metros. Diablair.
- Achou mesmo que conseguiria desta vez, não é? - indagou o mascarado com seu sorriso maligno e o espinho de metal na mão se transformando em machado enquanto erguia e retraía o braço, mirando a arma na garotinha. - Bom, se servir de consolo, é a última vez que lançarei isto aqui. Só que, desta vez e a esta distância, mesmo que pule, vou partí-la ao meio! - e então ele jogou o machado com a mesma força e velocidade monstruosas de sempre na direção de Ternura.
Perante aquela situação extrema, a menina sentiu algo fluindo como uma torrente dentro de si. Não era ódio ou algo parecido, mas era tão potente quanto. Não havia pânico ou desespero em seu olhar, mas sim uma determinação hercúlea queimando-lhe toda a dor e dúvida ao fitar Diablair nos olhos com uma expressão carrancuda na face enquanto dava um chute na parede e movia o punho direito fechado em direção ao ombro esquerdo, torcendo levemente o quadril enquanto o machado voava feito um raio em sua direção. Então, surpreendentemente, Ternura deu um murro com toda a sua nova força na lateral da arma, interrompendo a trajetória homicida e fazendo a arma colidir estrondosamente na parede.
- O PRÓXIMO VAI SER NA SUA BOCA, DIABLAIR! - gritou a infante enquanto ela e a arma despencavam rumo ao fundo do poço. - POR FAVOR, CONTINUA LUTANDO TAMBÉM, TIO DIAB!
Pela primeira vez em muito tempo, o ser com máscara de Demônio sorria não com deboche, mas sim sinceramente impressionado conforme se retorcia para melhor observar a menina sumindo na escuridão.
Ela não tinha como saber, mas havia passado na parte principal do teste com todo o louvor.
Centésima octagésima Marca:
Ternura teve que esperar a mão sarar completamente e isso demorou um longo período ao qual ela aproveitou para treinar e se preparar ainda mais. Depois de horas escalando pela milésima vez aquele poço, ela finalmente havia conseguido sair dele, praticamente se arrastando para fora quando enfim alcançara a borda da estrutura. Estava bastante cansada, mas não pôde conter os brados triunfantes e o choro de felicidade ao concluir aquele treinamento devastador. Diablair a aguardava um tanto distante do lado de fora e, ao ver Ternura saindo do poço, apenas disse:
- Pelo visto a Srta Morgan tem uma rival à altura agora*. Congratulações, Srta Ternura: amanhã à noite virei lhe buscar para mostrar como sair deste Reino.
E ignorando quaisquer perguntas e queixumes de sua ouvinte mirím, Diablair se retirou do local, deixando uma exausta, todavia exultante garotinha deitada na grama seca do lugar.