O Canavial
Silva
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 25/03/21 23:22
Avaliação: Não avaliado
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[Texto Divulgado] "Cinzas no Deserto" Uma história baseada em algumas histórias baseadas em histórias que tanto amamos, de coração. Bora ler.
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único O Canavial

Recife, 04 de fevereiro de 2019.

Caro Sr. Assis, quanto ao conteúdo de meu relato, peço-lhe encarecidamente que não me tomes por um velho perturbado. É bem verdade que me falta a nitidez dos olhos e com dificuldade ouço aquilo que me dizem, mas lhe asseguro que minhas memórias daquelas noites nefastas estão tão vívidas quanto as paixões da mocidade. Em janeiro de 1975, eu estava no vigor dos meus vinte e três anos quando ainda cursava direito no Recife. Nos meses que antecederam o ano-novo, eu vivia a primaveril tolice da paixão. Luzia... dona de meus versos e pensamentos. Oh sim, vez ou outra arriscava-me na poesia, embora as rimas sempre me abandonassem nas entrelinhas. Desde que a encontrei num restaurante do centro, cheia de sorrisos e boas conversas, a morena falava-me de sua vida no interior, do trabalho da família na roça e bem como as lendas que assustavam crianças durante á noite. Me conheces bem para saber que sempre fui um homem dado aos livros e cético quanto as numerosas superstições que correm de boca em boca como as fofocas das senhoras desocupadas. Todavia, admito que considerava um aspecto cultural interessante, mesmo que completamente fantasioso.

Entretanto meu estimado amigo... a viagem até Gravatá abalou minhas convicções racionais. Logo saberás o porquê. A princípio, a ideia de conhecer meus futuros sogros não me assustava como temeriam os jovens em tal situação. Afinal, eu era um bom partido como dizem as boas línguas: Estudado, nascido numa família tradicional e em pouco tempo teria minha própria firma. Afirmo como um tolo apaixonado que Luzia era diferente das mulheres que conheci em minha vida boêmia. Atraente de fato, porém não haviam máscaras em sua face. Ela dizia-me o que realmente pensava numa bela simplicidade que me atraiu sobremaneira durante nossos encontros. Em meu ímpeto jovial e a contragosto de meu severo pai, apenas lhe disse que casaria com quem eu bem quisesse, bem-nascida ou não.

Partimos do Recife em meu saudoso Chevette azul até a cidade natal de minha amada. Deixando o alvoroçado centro urbano para trás, as estradas ainda eram de barro naquela época, embora o percurso irregular fosse atenuado pela minha doce companhia. Os oitenta e quatro quilômetros logo se foram entre causos e risadas. Sei que aprecias os detalhes como um bom vinho, então saliento que no tocante à geografia, a cidade é um meio termo entre a Zona da Mata e o Sertão. Quanto ao clima, Luzia dissera-me que o humor de São Pedro variava bastante naquelas bandas. Ora chovia demasiadamente, ora um calor demoníaco parecia nos possuir. Olhando pela janela do carro, fui recompensado com o peculiar contraste da vegetação que se alternava entre a sofrida caatinga e a rara mata atlântica.

Ao adentrarmos na cidade, logo nos deparamos com o Polo Moveleiro, um conhecido ponto turístico local dedicado sobretudo a obras do artesanato. Sempre fui um admirador da arte, ainda que minha destreza nesse quesito fosse completamente pífia. Lembrei-me com certo humor de minhas tortuosas tentativas com argila durante a infância. Diferente destas, o polo contava com belos entalhes de madeira, filtros e vasos de barro, esculturas de cerâmica além de cordéis e pinturas a óleo que certamente causavam uma boa impressão aos visitantes. Á respeito das esculturas Assis... devo dizer que fiquei um tanto curioso. Por breves instantes jurei ter visto um cão, um grande cão preto no meio das santas.

Seguimos pela estrada passando por uma antiga paróquia, a Igreja Matriz de Santa Ana. As paredes alvas com adornos dourados da capela acompanham uma torre sineira de uns trinta e cinco metros. Luzia contou-me sobre a história. No final da década de 30 uma capela foi derrubada para que a nova se erguesse naquele lugar sob a invocação da padroeira da cidade. Diante da igreja, corajosamente vestido com uma batina preta naquele sol causticante, o vigário acenou para mim em cortesia. Não me demorei no olhar, mas achei-o um tanto jovem para tal posição. Novamente ouvi outro relato sobre a cidade, o antigo padre fora encontrado morto quando alguns fieis intentavam confessar seus pecados. Desde então nunca se soube a verdadeira causa da morte, embora o povo fale que tenha sido envenenado por algum invejoso ou que o diabo tenha lhe carregado.

Por fim, chegamos ao nosso destino. Próximo a um canavial, no meio de uma verdejante, embora um tanto desértica paisagem, erguia-se uma casa de taipa, mas não do método mais antigo, o pau-a-pique, como a maioria das moradias que vimos ao longo caminho, mas sim das que chamam de taipa de pilão. A edificação é batida com terra e madeira, o que torna a casa mais resistente em comparação à técnica anterior. Sabes que nunca fui um grande entusiasta da engenharia, então espero ter sido suficientemente claro, então perdoe-me se minhas descrições arquitetônicas foram um tanto vagas.

Pois bem, meus sogros eram dotados de uma simpatia que não se vê na cidade grande. Ambos me passavam uma serenidade convidativa e gentil, assim como Luzia tinha. Seus pais, Seu José e Dona Maria, eram um casal bem-apessoado e de sorriso fácil. Confesso que esperava ser recebido por um homem sisudo e ignorante. Para minha surpresa ele tratou-me tão cordialmente como se fossemos velhos amigos. De igual maneira sua esposa recebeu-me quase como um filho. O homem era um senhor grisalho de bigode marcante, além de bem-humorado. Poderia demorar-me em mais parágrafos narrando a calorosa recepção, a visita ao galinheiro, o saboroso almoço e o esclarecimento de minhas intenções quanto á Luzia, mas creio que tais detalhes são triviais quanto ao que irei revelar nas próximas linhas. Para isso devo falar do filho mais novo do casal, Bentinho. O garoto tinha pouco mais de oito anos, e pelo que me recordo, puxara bastante da mãe. Sarará de olhos claros e cabelos acastanhados. No entanto, ao contrário dos pais, ele mostrou-se um pouco acanhado com o estranho que voltara com sua irmã lá do Recife. Olhar para o garoto lembrou-me de minha companheira inconveniente de escola, a senhorita timidez.

Assim que tive oportunidade, retornei aos tempos de meninice com Bentinho entre os tecos das coloridas bolinhas de gude e nos rodopios dos piões de madeira. Um tempo onde os pequeninos podiam sair e brincar até o entardecer. O dia foi-se veloz como os cavalos dos vaqueiros que guiavam o gado naquela região. Um deles voltou o olhar para a propriedade, demorando-se um pouco antes seguir seu caminho. Fora suficiente para despertar minha desconfiança. O tal sujeito curioso chamava-se Juarez, a quem voltarei a mencionar neste decadente aglomerado de palavras. Ao cair da noite que aparentava a semelhante calmaria da manhã, reunimo-nos no terraço após o jantar.

Seu José pôs-se a contar-nos histórias, variados relatos de mal assombros. Bem sabes toda a sorte de lendas que correm o imaginário popular, sobretudo no interior. Confesso-te que ele era deveras hábil nas narrações, pois até para mim que nunca foi tão crédulo em tais coisas, vez ou outra me vi arrepiado com os causos. Arrancou-me inclusive algumas risadas, como no conto em que o óbito do velho padre fora causado por um gato preto que comera toda a farta ceia a qual o clérigo havia preparado. E então o voraz felino lhe cortou a garganta enquanto o pobre coitado tentava acertar o bichano com uma vassoura. Apesar da pacata bonança, não demoraria muito até que as sombras noturnas viessem a assombrar-me. Meus olhos já um pouco pesarosos de sono, pousavam sobre um livro enquanto ainda havia um pouco de luz nos candeeiros. Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Creio que não preciso relatar-te sobre a qualidade do romance. Naquele momento Assis, nenhum de nós viu quando Bentinho saíra da casa. Acima do telhado, o pio duma coruja branca ressoou no ar como um mau agouro. “Misericórdia!” Luzia benzeu-se. Quando olhei de soslaio para meu carro, vi uma silhueta mover-se perto do canavial. Era o menino.

Gritei por Bentinho, mas ele não me ouvira, parecia estar em transe enquanto caminhava até a figura que se ocultava nas canas. Atirei-me pelo terreno ao passo que Seu José vinha logo atrás carregando uma espingarda. Ainda corríamos quando ele foi puxado para dentro do canavial. E então ouviu-se o grito, desesperado e terrível. Seguimos no encalço por entre as sombras e a vegetação. A cada passo, uma sensação horrível tomava conta de mim, chamávamos por Bentinho e nada tínhamos em resposta. Nem gritos, nem passos, nem mesmo a vegetação a nossa frente se movia. Nada. Nada além de um inquietante silêncio apenas interrompido pelos grilos. Caminhamos até onde a plantação findava, na beira do rio. O rio, Assis... O rio... Lá estava o menino. Bentinho jazia nas águas com um ferimento profundo na lateral do intestino. Seu José caiu com os joelhos em terra, chorando, gritando, ciente que estava diante do cadáver de seu filho.

A notícia correu cidade, embora a maldita censura tenha abafado os veículos de imprensa. As autoridades locais queriam evitar um pânico generalizado para manter as aparências a economia da cidade. O vigário organizou o velório de Bentinho, mostrando-se prestativo num momento de luto da família. Como disse anteriormente, achei-o jovem demais para um clérigo. Aparentava pouco mais de trinta anos e tinha uma conversa agradável. Nunca tive muito apreço por religiosos, e mesmo não tendo minha simpatia, o tal vigário Amaro cumpria bem sua designação. Não obstante, tive plena certeza que o cruel destino de Bentinho era caso de polícia. Ainda atordoado com tamanha fatalidade, deixei Luzia com os pais e dirigi-me até a delegacia mais próxima para prestar meu depoimento.

Certamente a descrição de um vulto num canavial não seria de grande valia para a investigação, mas senti-me na obrigação de fazer algo a respeito. Até retornei ao fatídico local esperando encontrar algum vestígio. Minha procura foi em vão, era como se estivesse atrás de um fantasma. Sequer haviam pegadas ou sangue, deixando-me mais perturbado ainda. Enquanto ainda rumava pela estrada de barro, deparei-me com o vaqueiro Juarez, que com certeza não parecia satisfeito em ver-me naquela manhã. Da sela do cavalo preto, mostrou-me um olhar severo, abaixo daquele chapéu cobria-lhe os cabelos castanhos. Chegou até a janela do carro, enquanto eu me atentei para o revolver em sua cintura. “Cê viu o que puxou o menino?” Perguntou-me num tom agressivo. Contei-lhe sobre o vulto, e pela feição irritadiça, notei que ele também ansiava ter alguma resposta concreta.

“Tá armado?” Rosnou fazendo-me a segunda pergunta, e talvez tenha cometido o erro de ser honesto com um estranho que certamente era perigoso. “Cuidado pra não ficar bestando por aí, principalmente de noite. Aqui, o diabo corre solto. Se fosse tu, arranjava logo um ferro.” Advertiu-me e logo pôs-se a trotar com o equino. A despeito da delegacia, julgando pela ausência de policiais e do mato em derredor, nada fiz além de gastar gasolina naqueles poucos quilômetros. A reputação de Gravatá era duma cidade pacata com baixíssimos níveis de criminalidade, todavia não justificava o completo desleixo com a segurança. Tornei para a casa envolto de temor e frustação. Talvez a paranoia estivesse a pairar sobre mim quando notei que as pessoas me dirigiam olhares carregados de desconfiança. Em meus devaneios, achei que estivessem conjecturando que de alguma forma eu fora responsável pela morte de Bentinho.

Ainda perdido em pensamentos, pisei no freio bruscamente quando um cavalo invadiu a estrada vindo do mato. Por um triz o pior não aconteceu. Dois rapazes o perseguiam desesperados. No entanto, havia algo estranho no animal, sua crina estava amarrada, completamente trançada como no relato de um daqueles mitos locais. Ponderei que não passasse duma brincadeira infantil que também caíra no âmbito das crendices. Segui com meu pesaroso caminho. O segundo dia exalava uma atmosfera completamente distinta da manhã anterior. Não haviam sorrisos largos, nem a serenidade nos olhares agora contristados. Toda alegria da casa partira com o menino. O mais terrível era não saber o porquê nem quem ou o quê... fizera aquilo com Bentinho. Como dizem, no interior todo mundo se conhece, a família não tinha inimigos e por ora, não haviam suspeitos.

O almoço, se não fosse pelo mexer dos talheres, seria completamente silencioso. Durante as horas que se seguiram, fiz meu melhor para tentar animá-los puxando alguma conversa sobre outras histórias da cidade. Embora sem tanto sucesso em minhas tentativas, Luzia forçou um sorriso aqui e ali, embora vê-la daquele jeito entristeceu-me bastante. A noite não tardou em chegar, e com ela, mais perturbações vieram. Pouco antes do jantar, andava ocioso, encarando da casa o maldito canavial. Foi neste momento que tornei a ver outro vulto, sob a figura de um homem vagando próximo da vegetação. Encolerizado, peguei um facão com Dona Maria e saí em disparada. Quando me aproximei, percebi que era o vigário. Lhe indaguei o motivo de estar ali, e ele dissera-me que caminhar durante a noite o aproximava de Deus. Mesmo sob minhas suspeitas, adverti que tomasse cuidado, sobretudo depois de algo tão terrível acontecer. Todavia, barulhos de tiros ecoaram, os disparos eram próximos.

Sucedeu que uma menina também fora achada morta nas mesmas condições de Bentinho. Juarez atirava no matagal. “Apareça Papa figo!” Berrava, xingava, berrava! “Eu o vi! Tinha garras e dentes, botou minha prima dentro dum saco!” Enquanto o vaqueiro ainda descrevia a aparição, pude ouvir um uivo. Voltei-me correndo para a casa, sentindo o coração quase sair-me pela boca, e então, vi um grande cão preto acima do telhado. Boca aberta e dentes amostra, vermelhos como o carmesim. Suas vítimas? Luzia e meus sogros, como cordeiros no matadouro. Juarez atirou no bicho, que foi-se correndo nas trevas. Reunindo forças no olhar para fitar aquela chacina, notei que um rosário jazia junto aos cadáveres despedaçados.

Deixo-te esta carta com alguma esperança que acredites, mas no fim, pouco importa. Verdades e mentiras estão numa linha tênue. Alguns dizem que enlouqueci depois daquela noite. Outros, que eu os matei. Condenando uma família inteira a um macabro fim. Quase fui espancado no dia seguinte, mas o destino me reservou algo pior: Duas décadas num sanatório. Torturavam-me dia e noite, e já desejei a morte por muito tempo. Consegui fugir há pouco mais de dez anos, mas só hoje tomei coragem para fazer esta revelação. O registro sobre aquele antro de loucura fora anexado a este documento. Já não suportava guardar tais fatos comigo. Escrevê-los tirou-me por um pouco do peso do que estou por fazer. Tornei a maldita cidade uma última vez. Reservei uma bala de prata para o vigário e outra para o Papa Figo. Confessei-me com Amaro, pouco antes de matá-lo em sua bela paróquia. Não busco perdão pelo que fiz caro amigo, pois já cumpri minha penitência neste inferno. Segui o conselho de Juarez e agora rumo para o mesmo canavial com uma arma em mãos, encarando a assombração que deseja matar-me na escuridão.

Cordialmente, Escobar.

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Postado 26/03/21 16:13

Aqui, o diabo corre solto.

Querido Silva, considere-me curvado à ti; essa é definitivamente uma das obras-primas do horror, não apenas da Academia, mas quiçá de toda a literatura lusófona.

A narrativa do descenso de um indivíduo de pensamento científico, cético, aos poços da insanidade (ou, mais corretamente, da ciência do metafísico e do paranormal), tão comumente escrita de forma medíocre e meia-boca, aqui é magnífica; do início ao fim, gostamos de Escobar e de cada um dos outros personagens, da forma como todos os seus caminhos se cruzam no final arrepiante.

O estilo da escrita é absolutamente perfeito. Os parágrafos longos, repletos de informações e detalhes, as descrições das edificações (me pergunto, inclusive, se o senhor por acaso não fez um curso de edificações ou teve aula de arquitetura?) são corretíssimas (tive três bimestres de arquitetura, hihi), e isso acrescenta muito à verossimilhança da obra. É o estilo perfeito para um homem cético, científico.

Meus parabéns, <3

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