A Oferta
Maquina de Contos
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 07/04/21 04:10
Avaliação: Não avaliado
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Não recomendado para menores de dezesseis anos
Capítulo Único A Oferta

O barulho do drone se aproximando entra no sono como o zumbido de um mosquito irritante, mas já me prepara para despertar. Mesmo dormindo já sei que tem alguém interessado em mim e sei que minha grana tá acabando... é difícil viver com um mínimo de dignidade.

Meu celular toca, chamando por Dante - meu nome - me tirando de meu sono e trazendo para a realidade. Ainda deitado na cama, vejo que já tenho 3 ofertas, mas as recuso, são todas tarja roxa, o que indica que envolve sexo e nudez. O dia mal começou, mas os pervertidos estão sempre com fome.

Me levanto, vou até a cozinha ignorando a higiene bucal - não é como se esse detalhe fosse me ajudar a conseguir uma oferta - abro o armário e verifico a data de validade do cereal, estava em cima do prazo - como o aluguel do apartamento - coloquei todo o cereal numa tigela e me sentei no sofá, gosto do silêncio do meu apartamento, mas o barulho dos drones passando pela minha janela me compeliu ligar a TV para abafar o som da realidade que me espera.

"...Hoje o digital influencer Ícaro, também conhecido nas redes sociais como Ikki4891 foi encontrado morto. As autoridades legais trabalham com a ideia de suicídio, mas investigadores ofertados pela família do influencer acreditam em assassinato. O último destaque de Ícaro foi o seu casamento com a princesa de Dubai Aysha Hakkar, um casamento ofertado pelo próprio pai da princesa Aldair Hakkar como um presente de aniversário para sua filha. Ícaro foi ofertado no valor de 8 milhões de dólares, o maior valor ofertado para um casamento até agora…”

É só isso… todo dia é só isso que temos, vivemos num grande mercado de entretenimento. Não sei bem quando e como isso aconteceu, não nos sobra tempo para estudar o passado, ou para sermos politizados. Estamos muito ocupados tentando entreter para sobreviver. Não existe mais emprego fixo, você quer um encanador? Procure por algum desesperado e faça uma oferta… os mais ricos fazem a oferta para pequenos serviços e todo tipo de entretenimento e os mais pobres e necessitados só podem aceitar. Eu por exemplo procuro viver com o mínimo, quanto menos eu consumo menos me submeto a oferta deles, mas é dia de pagamento do aluguel, falta comida em casa… alguma oferta terei que aceitar.

A coisa mais difícil do mundo é viver com o mínimo de dignidade. Passei o dia inteiro entrando em ruas mais populares das quais me era permitido entrar e nelas somente trabalhos tarja rosa eram ofertados para mim, nas ruas mais pobres o negócio mais digno era ceder sua moradia ou bar para que aconteça alguma tarja vermelha - serviços que envolviam violência, tortura e risco de morte. Não é à toa que vários criminosos famosos saem daqui.

O barulho dos drones procurando por entretenimento, o caos advindo do desespero diário que acontece nas nossas ruas somente para agradar aos burgueses de mente mais suja em troca de alguns trocados... como posso reclamar se sempre foi assim? Alguém sabe como tudo isso começou? Não... não podia me dar ao luxo de pensar nisso, tenho minhas contas para pagar.

- Olá, boa tarde, me chamo Walter... vejo que está procurando trabalho, o senhor poderia aceitar a minha oferta? - disse um senhor bem simpático, mas com terno maltrapilha, junto dele havia um drone lhe acompanhando.

Confesso que olhei de cima para baixo, preocupado em saber o quanto ele tinha a oferecer.

- Não se preocupe, eu tenho condições de pagar - ele percebeu minha insegurança - mas antes gostaria de conversar um pouco, explicar minha condição.

Fomos até uma lanchonete, antes mesmo de nos sentarmos no balcão, o atendente já nos serviu com um copo de uísque.

- Cortesia da casa - ele disse olhando para Walter, achei que era por causa da roupa, mas…

- Eu já sei, estou resolvendo isso - disse Walter com um sorriso simpático que agora confesso que dava sinais de nervoso.

Deu um gole rápido e logo em seguida o atendente lhe serviu novamente.

- Dante, você sabia que este lugar dá bebidas de cortesia para quem aceita ofertas de tarja vermelha?

Eu olhei para meu copo com uísque com um pouco de medo de talvez ter aceitado alguma oferta sem querer.

- Muito provavelmente talvez tenha que pagar pela sua bebida... ou talvez não, vamos ver como esta noite vai terminar.

Relaxei um pouco pois não ter dinheiro pra pagar um uísque era muito mais tranquilo do que participar de uma tarja vermelha.

- Walter, eu não quero ser ríspido com você, mas preciso saber do que tudo isso se trata.

- Pois bem, veja só isso - tirou do bolso uma foto de uma mulher bonita, mas de aparência cansada segurando um bebê e do lado uma criança tímida abraçava sua cintura - está é a minha família, a turminha que deixei em casa hoje cedo, estamos passando necessidade e eu lhes prometi que tudo se resolveria até a noite... não costumo fazer promessas desse tipo, o que me faz desconfiar que já tinha em mente fazer alguma besteira… como essa que estou prestes a fazer.

Ele guardou a foto na sua carteira e botou no bolso da jaqueta, fez um carinho por cima da jaqueta como se estivesse lhes carregando consigo. Virou o uísque na boca e o atendente logo em seguida verteu mais bebida em seu copo.

- Pois bem, vamos falar de negócios - endireitou o corpo, expressão mudada, parecia até outra pessoa - é uma oferta tarja vermelha, mas acho que você é alguém necessitado também então não vai ser problema.

- Ei, espera aí, eu não quero correr risco de vida…

Fiz menção de me levantar, mas ele me segurou pelo braço.

- Calma rapaz, senta aí, lhe asseguro que esta é a tarja vermelha mais segura que alguém poderia aceitar, dinheiro e integridade física garantidos.

- Estou ouvindo... - disse sem sair da minha posição de retirada.

- Faz mais ou menos uns 40 minutos atrás aceitei uma oferta, tarja vermelha, é só o que existe para pessoas como nós... - mais uma dose de uísque vertida, mais uma dose de uísque servida - a oferta dizia que eu tenho uma hora para filmar alguém arrebentando minha cabeça até a morte e, bom... é aí que você entra... você tem menos de 20 minutos pra decidir se aceita ou não.

Não consegui esboçar reação, era uma grana que adiantaria um pouco as coisas e... não é como se recusar evitaria sua morte, na verdade complicaria muito mais as coisas, pois ele ficaria sem o dinheiro da oferta e muito provavelmente seria morto por não cumprir a oferta aceita... ofertas tarja vermelha é algo muito sério, movimento todo um nicho de mercado milionário na deep web.

Meu celular tocou, a notificação dizia que era uma oferta de Walter, tarja vermelha, 3 mil reais.

- Você pretende pagar por tudo isso? - perguntei intrigado.

- Sim, a proposta que recebi foi de 10 mil pela minha morte, já configurei minha herança para minha família receber 70% e os outros 30% ta em aberto para quem eu quiser, é só você aceitar a oferta e teu nome vai para minha herança.

Eu finalmente virei o primeiro copo de uísque, começamos a conversar sobre outros assuntos. Falamos sobre futebol, basquete, filmes, casamento de famosos... alguma coisa nele lembrava meu falecido pai ou talvez fosse os 5 copos de uísque consumidos durante a conversa, quase acabamos com a garrafa.

O celular dele tocou, sinalizando que faltavam 5 minutos para cumprir a oferta. Ele deu um sorriso melancólico, pegou a foto da sua família na carteira, olhou novamente e respirou fundo. O celular de Walter tocou novamente, dessa vez avisando que eu havia aceitado sua oferta.

- Humpf, muito obrigado... deu pra ver que não é uma decisão fácil. - ele guardou a foto de novo acariciando, botou meu nome no seu arquivo de herança e fixou o olhar no balcão - Espero que meu filho seja tão correto quanto você.

- E eu espero que não…

Bati a cabeça dele no balcão fazendo-o cair no chão.

- Espere... espere…

Ele disse, procurando o drone para ter certeza que estava filmando tudo do melhor ângulo possível e depois balançou a cabeça afirmando para que eu continuasse. Tentei ser o mais breve possível. Dei pancadas fortes e sucessivas na cabeça dele. Houve um momento de movimento involuntário e depois parou de respirar, rosto ensanguentado e somente o som do rotor do drone funcionando. Ficou lá filmando o cadáver de Walter por um tempo e depois foi embora. Houve um toque binaural indicando sucesso no trabalho de Walter e depois tocou no meu celular indicando 3 mil reais na minha conta... não fiquei feliz com isso, mas educadamente cumprimentei o balconista e por mais que tivesse dinheiro pra pagar uma carona, preferi pagar a penitência de voltar para casa andando. Tomei banho, transferi o dinheiro para a conta do síndico e antes de dormir um sono sem sonho, lembro que pensei novamente em como é difícil viver uma vida com um mínimo de dignidade.

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Postado 26/09/21 20:50

Caralho moço, me perdoa o palavrão, mas essa é a melhor forma de expressar o que estou sentindo após ler essa facada certeira em meu pescoço.

Esse texto me pegou de um modo muito profundo, muito triste. Isso sobre a coisa mais difícil do mundo ser viver com o mínimo de dignidade foi horrivelmente cruel e infelizmente tão real.

Eu não gostaria de ter imaginado isso, mas eu imaginei facilmente a sociedade se tornando algo ridículo assim, pois na verdade a sociedade já é assim, apenas não é escancarado como é no texto. E isso é assustador.

A proposta de Walter me surpreendeu muito, e gostei demais de toda a tristeza que essa cena evocou... O que temos que fazer para que nossa família sobreviva, é desumano...

Eu não tenho nem palavras para descrever o quanto amei esse texto. Você é um escritor incrível, sinceramente. Fascinante o seu modo de escrever!

Ah, e antes de terminar meu comentário, preciso dizer algo sobre essa frase: "O dia mal começou, mas os pervertidos estão sempre com fome". Não faço ideia do que você quis representar ao dizer isso, mas para mim isso adquiriu o significado da industria pornográfica, que é completamente podre, e se alimentar justamente de quem se alimenta dela, em um ciclo de vício, tristeza e perdição.

Parabéns por ter escrito algo tão incrível assim!

Um grande abraço <3

Postado 09/10/21 21:27

Muito obrigado, fico feliz que tenha gostado e é, ao mesmo tempo, triste que faça tanto sentido. Surgiram muitas ideias enquanto eu tava escrevendo, eu sinto que existe uma crítica nesta história que atinge todas as classes sociais e cada individuo de maneiras diferentes.

Gostei da maneira que interpretou a frase citada, eu quis deixar espaço para interpretação aqui, mas posso garantir que é um pouco mais amplo do que a industria pornográfica em si, é mais sobre o apetite sexual, o fetiche exarcebado, a vontade de realizar o desejo a todo custo... não somente industria aliciando pessoas, mas viciados aliciando pessoas. Esse mundo é um grande self service 24 horas para essas pessoas.

mas que bom que curtiu, espero trazer outras história que agradem em breve.

Abraços.