Os amigos
Belmiro Maravalha
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 22/09/21 16:38
Editado: 22/09/21 16:39
Gênero(s): Cotidiano Reflexivo
Avaliação: 9.53
Tempo de Leitura: 4min a 6min
Apreciadores: 4
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Palavras: 778
Livre para todos os públicos
Capítulo Único Os amigos

Terça-feira, 18:20. Bar do Amadeu. Temperatura agradável.

— Sabe Gil, eu preciso fazer alguma coisa.

André estava debruçado com os cotovelos fincados na mesa.

— Que tá falando? Quer fazer o que? — estranhou Gil, entornando o copo de cerveja.

— Sei lá. Eu aqui todo o santo dia. Bebendo. No outro dia aqui de novo.

— O que....vai dizer que tá querendo parar de beber de novo.

André passava a unha na mesa de aço, tirando as casquinhas da tinta que se soltavam.

— Não é isso. Mas esse negócio de bar tá atrapalhando minha vida conjugal.

Gil pediu mais uma cerveja para Amadeu, que limpava o balcão com um pano encardido.

— Cara, é normal. Toda a mulher implica com isso. Não adianta esquentar.

— Você é solteiro. Não entende. É complicado. — Mulher é encrenca. Pelo jeito vou ter que beber sozinho hoje.

— Que acha que devo fazer?

— Sei lá. Ignore. Chega uma hora, ela desiste de falar.

— Ela não desiste. Nunca desiste de nada. Conheço a mulher que tenho.

Ficaram em silêncio alguns minutos até que chegou Miltão. — E aí. Beleza? Que cara de funeral é essa? — É o André. Tá deprimido.

— Manda um copo Amadeu. Dois. O Chico tá vindo aí.

Agora me fala que merda é essa. — Problemas conjugais amigão.

— E isso é problema? Problema é dinheiro, saúde — Eu falei pra ele ignorar. Qualquer coisa que ela diga, ignore – completou Gil, enquanto devorava uma asa de frango.

— Ela tá te enchendo por causa do bar?

— Ontem ela me mandou um bilhetinho mal educado, logo que você foi embora.

— E você ficou assim só por causa de um bilhetinho?

— É que vai enchendo. Todo o dia a mesma coisa. Já estou me chateando. Fora quando ela vem aqui.

— Não desiste. Se você der o braço a torcer vai ser pior — se intrometeu Gil.

— Fique firme amigão. A gente tá aqui com você. Pode contar com os amigos Pediram mais duas cervejas. Chico chegou logo depois. Ficaram ali os quatro, confabulando.

— Ela disse que não vai mais pagar minhas contas., principalmente a do bar.

— Amigo, não se preocupe. Pelo menos a conta do bar a gente dá um jeito. Até essa crise passar.

— Pode ter certeza. Teus amigos nunca vão te abandonar.

Gil não se pronunciou. Somente assentiu com a cabeça. Todos tinham o conhecimento que estava desempregado. Não poderia se sacrificar. Mas mesmo assim sabiam que também estava solidário á causa do amigo.

Os olhos de André lacrimejaram. Ficou tocado com a atitude de seus companheiros. Nunca o haviam abandonado. Estavam ali todos os dias, nunca o deixavam sozinho.

Eram seus irmãos, sua família. Agora estavam mais unidos do que nunca.

Ficariam até mais tarde naquela noite. André precisava daquela força.

Amadeu começou a levantar as cadeiras. Era o sinal que já chegava por hoje.

Quando então trancava as bebidas por trás de uma porta de vidro (não porque tinha desconfiança, o bar sempre fora assim, e sempre ficaram trancafiadas), todos sabiam que já deviam acertar as contas e irem embora.

Um a um se despediram de André, dando-lhe forças, o incentivando.

Sempre era assim. Ficavam somente André e Amadeu. E quando Amadeu terminava tudo para finalmente fechar o bar, perguntava a André.

— Quer que apague a luz?

— Pode apagar. Acho que já vou dormir. Meio cansado hoje.

— Boa noite então. Até amanhã. E não fique assim. Todo mundo tem problemas.

Amadeu apagou a luz e fechou a porta de aço pelo lado de fora.

André ficou ali no escuro. Ouvia somente o barulho do freezer, no seu ligar e desligar automático.

Refletia e remoía os pensamentos. Por um momento havia passado por sua cabeça desistir. Ir embora e fazer a vontade da mulher. Ainda bem que tinha amigos. Sabia que podia contar com eles.

Hoje ela não mandara nenhum bilhete, nem aparecera por lá. Quem sabe havia desistido de leva-lo embora. Ela tinha de se conformar, essa era sua esperança. Amanhã outro dia.

Tinha amigos, teimava em pensamento.Tinha o Amadeu.

A mesa estava fria e cheirava a cevada azeda, mas se acostumara. Já se passaram quase 6 meses.

Ele ali, irredutível. Sabia que tinha de resistir. Não só por ele, mas pelos amigos também.

Não podia decepcioná-los.

Antes de adormecer, lembrou-se de uma frase de Goethe que ele havia lido, não sabia aonde.

— Se você pensa que pode ou sonha que pode, comece. Ousadia tem genialidade, poder e magia. Ouse fazer e o poder lhe será dado.

Não sabia quem era Goethe, mas gostava da frase que ele tinha escrito. Já não poderia mais desistir. Mergulhou em sonhos. Debruçado na mesa gelada, dormiu o sono dos justos, imaginando que todo o dia que chega é um novo desafio para o homem.

❖❖❖
Apreciadores (4)
Comentários (4)
Postado 30/09/21 15:52

Eu amei tanto tanto tanto esse conto! Este conceito de "amizade verdadeira" que eles tem, é bem específico e não deixa de ser uma amizade forte, por mais que os meios possam prejudicar os fins.

Admito que esta obra gera um grande debate, eu amo ler enredos assim! Meus mais sinceros parabéns!

Espero que o André consiga ter momentos sóbrios, arranjar um empreguinho e viver melhor e espero que seus amigos também fiquem bem e tenham mais juízo hahaha

Amei o seu jeito de escrita, simples, com uma suave rudeza. É perfeito. Muito obrigada por compartilhar aqui!

Postado 05/10/21 06:27

Muito obrigado mesmo. Eu penso que se agradei a pelo menos uma pessoa com minhas estórias, e deixei algo para se pensar dentro da sua mente, mesmo que do tamanho de um grão de areia, minha missão foi definitivamente cumprida, e valeu cada momento. Abraços!!!!

Postado 10/10/21 13:43

É, não posso dizer que concordo com a mocinha do comentário acima, pois eu não consigo enxergar essas pessoas como amigos de verdade. Esses homens não são amigos do André. Eles são os seus piores inimigos.

Ficar incentivando ele a contnuar preso no vício. Incentivando ele a desrespeitar a esposa. Todos farinha do mesmo saco, que se merecem em sua triste existência. Sabe, eu acho esses "amigos" ainda mais prejudiciais do que o próprio vício em bebida.

Sabe porque? Porque sem os amigos, com a ajuda da esposa e um pouco de força de vontade, o André conseguiria sair dessa. Mas tendo esses abutres voando em cima dele, é praticamente impossível o André conseguir escapar dessa vida lastimável.

Mil perdões por minha interpretação tão pessimista. Eu gostei do modo como o texto foi escrito, pois gostei desse sentimento de revolta que isso me fez sentir!

Bem-vindo a Academia de Contos! Espero que goste daqui <3

Postado 19/10/21 14:44

Perfeito Melling...a estória deveria mesmo trazer esse pensamento, pq na verdade a realidade é essa mesmo.

Postado 21/02/22 22:33

Num primeiro momento, até é possível pensar no pessoal do bar como amigos do André, que o incentivam e estão ao seu lado numa mesa velha da Skol ou da Itaipava, todos os dias, todas as noites. No entanto, uma amizade vai muito além disso. É enxergar a dor do outro, sentir a dor do outro e ajudá-lo a sair desse momento tão obscuro, seja este qual for (no caso da história, uma crise no casamento). Prender o dito amigo num ciclo regado pelo vício não configura uma boa amizade, e é exatamente isso que os companheiros de bar do André fazem com ele.

Gostei da reflexão proposta pelo texto, é uma contestação refinada e sutil do valor da amizade.

Até mais!

Postado 09/10/22 23:39 Editado 09/10/22 23:41

Gostei bastante do desenvolvimento do conceito de amizade que você abordou nesse conto. Existem muitas pessoas como os "amigos" do André por aí e acredito que muitos vão se identificar com a mensagem alertada passada nesta obra.

Obrigada por compartilhar conosco!

Parabéns, Belmiro ♥