Eu estava já no sexto ou sétimo dia de bebedeira consecutiva; mas até aí tudo bem. O que realmente me incomodava era um notícia que esteve circulando na boca do povo aqui na cidade: um pai matou a mulher e os três filhos, à queima-roupa, e depois incendiou a casa.
Todos, é claro, ficam horrorizados com esse tipo de coisa, se bem que esse tipo de coisa está acontecendo a todo instante e não há nada que possamos fazer a respeito disso.
Eu já tentei me demitir da raça humana, mas isso — eu descobri depois — só é possível morrendo. A vida é um emprego e a morte é uma demissão por justa causa.
De qualquer modo, o niilismo nos espreita. Estamos com medo. Somos frágeis feito baratas. Esmagados pela doença, pela violência ou pelas próprias mãos. Esmagados pela ignorância, pelo pensamento e pelo tédio. Esgamagados pela família, pela escola e pelo mercado de trabalho. E, ainda assim, seguimos rastejando... Farejando a poesia... Em busca de migalhas da beleza e da alegria.
Tenho me sentido fraco. Olho-me no espelho com certa apreensão, averiguando a cor de meus olhos. Talvez eu tenha febre amarela? Quem sabe. Mas que diabos... Um mosquitinho minúsculo e ridículo nos chuta bem no rabo e nos manda para o além. Como isso é possível?
Tenho me sentido fraco. Tudo o que faço é sair de casa, ir direto à mercearia no final da avenida, e comprar a mesma garrafa de vinho barato por oito reais. Sete dias se passaram sem que eu me desse conta. E, também, eu me sento sempre no mesmo lugar, ao pé de uma estátua no meio de uma praça, e fico ali, observando o fluxo da multidão. Há alguma coisa nisso que te enche de vida e que, ao mesmo tempo, te mata aos poucos.
Nos bancos, nas redondezas, grupos de jovens sorriem, e tocam violão, e cantam. Onde foi que eu perdi esse espírito de comunhão? Desde quando uma cantoria dessas se tornou enfadonha pra mim?
Talvez seja só a estupidez de tudo. Talvez seja o odor acre de tudo o que existe — porque tudo o que existe é mijado incessantemente pela morte.
Um cara trajando uma boina militar cagada por um pombo se aproximou e me disse:
— Ei, cara! Augusto! Eu sou artista, hein! Sabia? Hmmm?
— Sim, Xavier.
— Hein! Eu desenho! Sou pintor! Vivo da minha arte! Sou artista desde os 10 anos!
— Pode crer...
O cara tava muito drogado. Escritores, pintores, músicos; esses caras estão sempre muito doidos de alguma coisa. A Arte afinal é como dançar na escuridão durante a queda — precipício abaixo, delirantemente.
— Ei! Me recita um poema aí, Augusto!... Daquele cara... Alemão... Charles...
— Bukowski.
— Não, não, não. É Bukôwsque.
— Bukôwsque.
— Isso, isso. Recita aí, brother! Mas pera aê! Antes vou dar uma mijada.
O filho da puta deu dois passos pro lado, botou o pinto pra fora, e mijou no pé da estátua do ex-imperador da cidade. E isso em plena noite, lá pelas oito. NO MEIO DA PRAÇA LOTADA.
Dei o fora o mais rápido que pude. Enquanto me afastava, ouvi vozes reclamando, um princípio de confusão.
Eu ainda tinha vinho, muito vinho. Eu estava fracassando em todos os aspectos: socialmente, amorosamente, artisticamente.
Talvez daqui a 10 anos eu olhe para trás e finalmente entenda tudo. Até lá, prossigo em busca de qualquer coisa que me catapulte através dos dias e das noites e das décadas, sendo abordado por essa série de loucos artistas drogados criminosos mijadores de estátuas.
Ou talvez daqui a 10 anos eu olhe para trás e pense: puta merda, nada faz sentido.
E nunca fará.