Vicente sempre teve medo do escuro. Dizem que quem tem medo do escuro costuma ter medo do que pode estar no escuro, mas para Vicente a sombra, mesmo que sozinha, já era assustadora. Por isso odiava voltar para sua casa de noite e por isso estava totalmente arrepiado enquanto fazia a curta caminhada até a segurança de seu lar.
Depois da escola, ele havia ido até a casa de meu melhor amigo, Sunoo, para jogar video games. Perderam a noção das horas e quando notaram já havia escurecido faz muito tempo. Sua súplica pelo telefone fora totalmente ignorada: sua mãe havia o mandado voltar para casa.
“Se quiser posso ir com você, sei que você tem medo do escuro.”
Sunoo tinha boas intenções, mas, sempre que esse assunto era falado em voz alta, Vicente sentia-se uma criança. Ele já era crescido demais para ter medo do escuro.
“Eu vou sozinho. Quem sabe não venço meu medo hoje?” E seguiu pela rua mais escura que o normal segurando (muito forte) as alças da sua mochila.
Da casa de Sunoo até a sua eram 15 minutos de caminhada à passo normal, à passo apressado como o de Vicente seriam 10. Deveriam ser.
Depois de alguns minutos (os quais Vicente estava contando na cabeça, tentando se distrair e não sucumbir ao medo) andando pelas ruazinhas repletas de breu, iluminadas apenas pela lua e os únicos postes que funcionavam a cada esquina, os olhos de Vicente avistaram dois olhos amarelos de gato.
Vicente gostava muito de gatos e, embora as orbes que apareceram do nada tenham o assustado, sabia que era um bichano. O gato lhe seguia andando quase ao seu lado acima do muro que acompanhava a rua. Virando a penúltima esquina, a luz do poste iluminou o pequeno felino, familiar demais para Vicente. Era Blair, seu gatinho sumido.
Blair era preto, muito escuro, e a única coisa que o diferenciava era uma pequena “pinta” branca abaixo do queixo. Vicente começou a saltitar acompanhando os passos do gato vira-lata no muro. Ele sempre teve gatos, mas Blair, arteiro que só, sempre foi seu favorito, pensar que ele voltava justamente num momento como aquele fez seu coração aquecer e aquiescer.
Na última esquina, onde o muro acabava, Blair pulou no chão. Vicente virava à esquerda com a mente já desanuviada das preocupações e do medo, mas o bichano virou à direita.
Se antes o medo tomava sua cabeça, agora um sentimento inexplicável havia tomado seu corpo. Vicente paralisou enquanto observava o gato continuar pela direita, a rua tão escura que ele não sabia como enxergava a silhueta dele cruzando a escuridão. Seu instinto e sua razão o mandavam virar à esquerda, seguir para casa. Mas algo, ele não sabia o que, o mandava seguir o gato. Não queria perder Blair de novo.
Chamou o bichano, mas ele não olhou. Estranho, Blair sempre olhava. Pspspsps, mais uma vez o gato o ignorava. Cedeu então ao desconhecido e virou à direita na esquina, indo atrás do gato para trazê-lo de volta para casa. Eram os últimos 5 minutos de caminhada, ele já podia sentir o cheiro da típica torta de abóboras da sua vizinha dali.
Blair tinha muitas coisas que o tornavam um gato único. Sua pinta charmosa, seu gosto por tomar chuva, sua habilidade em pular muito alto. Blair também tinha olhos alaranjados, o que o tornava bem diferente. Aquele gato tinha olhos amarelos, mas Vicente quis acreditar na mentira confortável. Blair tinha sumido e não morrido envenenado.
Falando nos olhos, eram as orbes que o guiavam pela escuridão. Brilhavam como uma lanterna, passeavam pelo breu deixando um rastro luminoso feito cometas. Era isso ou a mente de Vicente já estava torpe. Talvez os dois.
Sempre que se aproximava mais do gato, ele pulava à frente, o escuro se tornando mais palpável a cada passo. Vicente não conseguia o pegar no colo, queria só agarrá-lo e sair correndo dali para a casa. Sentia vontade de chorar, de dormir, de desistir, mas continuou calmo atrás do gato, que gata vez mais se aproximava de uma viela.
Vicente suspirou, só então percebendo que estava com a respiração pesada. A cabeça doeu ao ver o gato entrando na viela, então perdeu a silhueta dele de vista, finalmente o corpo preto do gato se misturando com a falta de luz. A luz parecia menos brilhante e menos azul. Não havia poste funcionando nessa esquina, não havia luz que o tirasse da sombra que o cercava e o deixava claustrofóbico. “É só um medo bobo.“, sussurrou silencioso e foi em frente onde a escuridão total o esperava.
As pequenas orbes amarelas voltaram ao seu campo de visão, o gato o encarava profundamente. De repente, quando Vicente estava próximo o suficiente para o pegar, ele pulou do chão para trás do muro de uma das casas que formava o corredor da viela. Um pulo alto demais para um gato, até mesmo para Blair. Da escuridão do outro lado do muro, dois gigantes olhos amarelados surgiram. Um sorriso escuro e amedrontador se abriu, mas estava escuro demais para Vicente enxergar algo além dos olhos.
Vicente não venceu seu medo, perdeu para ele.

