— Estou condenado. E você sabe disso, meu amiguinho.
Natã estremeceu com o poderio da afirmação categórica, o seu coração batendo apertado no peito. Encarou o amigo com um pouco de raiva. Não dele, claro. Era daquela situação inaceitável em que chegaram. Era só uma criança sem muita coisa na vida e estava para perder um dos poucos e verdadeiros amigos que possuía.
Quanto tempo se passou desde que se conheceram? E quanto tempo igualmente passaram juntos desde então? Quantas aventuras, quantas jornadas, quantas travessuras? Tantas! E em cada uma delas o fiel amigo o protegeu como e quanto podia, pois aquele era o propósito da existência dele: proteger. Só que o quinhão da energia infantil de Natã foi alto, mesmo para quem era tão novo e resistente quanto seu camarada o foi um dia.
A despeito de todo o apreço e cuidado, Natã via... Percebia que seu companheiro já não era mais o mesmo. Envelhecera a olhos vistos, se decompondo aos poucos, todavia de modo inexorável. A proteção se transformou em dor, já não era mais cabível aquele relacionamento tão próximo. Natã insistiu o quanto pôde em seu amor infantil pelo amigo, mas não conseguiu mais esconder as feridas. Muito menos suportá-las.
Não havia como caminharem juntos. Não mais.
— Olhe para mim, Natã. Olhe bem! — exigiu o velho com o que lhe restava de dignidade, fazendo o olhar do menino marejar. — Sou inútil agora! Não sirvo mais para você...
O menino baixou a cabeça e a frase "eu sei" veio em um murmúrio e com uma lágrima. Então, em silêncio apanhou a garrafinha de álcool e começou a banhar o corpo moribundo de seu querido amigo com o conteúdo incolor. Segurou o pranto como o homenzinho que era e se afastou bastante para não se machucar. A caixinha de fósforo estava na mão.
— Como naquele anime, né? — indagou seu velho amigo com um sorriso orgulhoso. — Eu também fui tão feliz, Natã...! Muito obrigado por ficar comigo até o fim... — as lágrimas dele se misturaram com a substância de odor pungente que o ensopava.
Seu sorriso indicava que não poderia haver desfecho melhor para ele. Para ambos.
Um palito foi riscado e lançado. Conforme a diminuta haste de madeira descrevia um arco flamejante no ar, Natã caiu de joelhos e assim que as chamas subiram, seu pranto descendeu. O berreiro e o cheiro da fumaça chamaram a atenção do pai do menino, que correu para o quintal e logo tratou de apanhar o infante nos braços e afastá-lo da fogueira onde o velho par de sapatos se incendiava.
Nenhum castigo ou surra que Natã recebesse por conta do funeral viking que providenciara ao amigo doeria mais do que a imensa sensação de perda em seu pesaroso e ainda inocente coração...