Mesmo com a nevasca do lado de fora, a carruagem se movia rapidamente graças aos alces negros e de chifres escarlates que puxavam o veículo que não possuía um condutor. Dentro da mesma, Blake encontrava-se encostado preguiçosamente no banco de couro do lado esquerdo, enquanto encarava as próprias unhas. Já no outro assento, do lado direito, Diablair movia os dedos diante do próprio corpo como se estivesse tocando as teclas de um piano invisível, enquanto um sádico sorriso enfeitava seus lábios. Apesar da viagem estar próxima do fim — tendo em vista que já era possível ver as luzes da mansão através da janela —, o hunter perguntou com curiosidade:
— O que está tocando? Noite Infeliz?
— Muito pelo contrário! Nunca uma noite de Natal foi tão satisfatória, meu jovem. — Declarou o líder Infernal com júbilo. — Estou tocan...
Antes que o homem negro pudesse dar continuidade a sua fala, a carruagem começou a perder velocidade, anunciando que a dupla havia chegado em seu destino. Blake ajeitou o corpo e, por alguns segundos, encarou as botas de couro bem engraxadas, as calças de linho cuidadosamente alinhadas e a elegante casaca vinho de inverno com o símbolo dos Gutemberg costurado, ironicamente, em cima de seu coração que, por conta de todas as mutações que passou, batia tão lentamente que nem era possível ouvi-lo. O jovem de cabelos negros inspirou profundamente, sentindo o ar gélido adentrar seus pulmões, exatamente como nas noites congelantes que passou no celeiro dos Gutemberg, onde a lufada fria era a única coisa que preenchia o vazio de seu peito e de seu estômago. Quando expirou, entretanto, um sorriso tão perverso se estampou em seus lábios, que Diablair passou a soltar uma risada baixa que gradualmente ia aumentando de volume, conforme seu âmago se enchia de satisfação.
O momento de exaltação foi interrompido por uma batida na porta do veículo. Blake a abriu e se deparou com uma criada vestida com roupas que aparentavam ter sido corroídas por traças e um corpo tão magro que parecia que seria levado pelos fortes ventos a qualquer momento. Ambos os homens desceram da carruagem e a jovem apressou-se em avisá-los:
— A entrafa fa mansão é fo outro lafo! Os nobres entram por lá!
A pobre moça não tinha os dentes da frente, o que a impossibilitava de pronunciar palavras com D corretamente, fazendo com que a consoante fosse substituída pela letra F. Ela provavelmente os havia perdido em uma das agressões corriqueiras infringidas pelos senhores da casa. Blake a encarou mais uma vez e, apesar da nevasca e da falta de luz, ele identificou o símbolo de uma panela costurada na lateral da touca imunda que a jovem usava para prender seus cabelos.
— A senhorita é a cozinheira? — Perguntou Blake, caminhando até a parte de trás da carruagem.
Por um segundo, a jovem recuou, temendo ser punida se respondesse. Todavia, ela olhou para ambos os homens e notou que os mesmos, apesar das vestimentas elegantes, não pareciam ruins. Por isso, ela decidiu seguir seu instinto e respondeu com um delicado aceno de cabeça positivo. Blake sorriu para ela e abriu o bagageiro da carruagem.
— Gostaria de saber se ainda é possível fazer uma contribuição para a ceia de natal desta noite. — Disse o hunter, fazendo um gesto com a mão para que ela se aproximasse e visse o conteúdo do bagageiro.
A criada deu alguns passos pela neve pesada e Diablair foi atrás dela, temendo que a mesma desmaiasse quando visse uma das mais grotescas cenas de sua vida. Quando a jovem olhou para dentro do bagageiro, seus olhos cinza se arregalaram, quase como se os globos oculares, assustados, quisessem saltar. O líder Infernal fez menção a mover os braços para ampará-la de seu iminente desmaio, porém a cozinheira desdentada começou a rir compulsivamente. Sua gargalhada possuía um tom maligno que beirava a satisfação. Quando a mesma se recuperou, encarou Blake e afirmou:
— Pelo visto, não terei que colocar os ratos que esconfi no porão na comifa faqueles porcos.
— Era isso que você estava indo fazer? — Questionou o líder Infernal, dando uma cotovelada suave na jovem, como se fosse um antigo companheiro.
A criada riu, acenando positivamente com a cabeça para o homem negro.
— Qual é o seu nome, minha adorável jovem e parceira? — Perguntou Diablair, fazendo uma reverência pomposa.
— Fanfara... — A cozinheira respondeu completamente constrangida.
— Dandara! — Exclamou o líder Infernal com emoção, fazendo com a que jovem se sentisse menos envergonhada. — Conto com sua ajuda nesta empreitada gastronômica natalina dos infernos.
— Senhorita Dandara, você acha que há a possibilidade de algum criado nos descobrir e relatar aos Gutemberg?
— Com trinta diabos, Blake! Você é o novo duque desta porcaria! Mesmo que eles soubessem, não poderiam fazer nada. — Atalhou Diablair.
— O novo fuque! — Exclamou a cozinheira, espantada.
— Por pouco tempo… Não pretendo carregar o nome de Blake Gutemberg nem mais por um segundo sequer… Faz mal para o meu espírito. — Disse o jovem de cabelos negros com severidade, caminhando para dentro da residência.
— Ele não se perferá fentro fa casa? — Perguntou a criada a Diablair, vendo Blake adentrar a cozinha e dando boa noite aos demais criados com muita educação.
— Não, definitivamente não… Ele conhece cada centímetro deste chiqueiro. — Respondeu o líder Infernal, pegando duas cestas de dentro do bagageiro.
— Como o senhor tem tanta certeza?
Diablair encarou a cozinheira, enquanto a mesma pegava a terceira e última cesta da carruagem. Assim que ela começou a caminhar para dentro da mansão, ele lhe respondeu:
— Porque Blake trabalhou por muitos anos aqui. Ele é o primogênito bastardo do duque e conseguiu reivindicar o que é dele por direito, mas é óbvio que ele não quer e nem precisa do lixo dos Gutemberg.
Dandara estancou no meio da neve, completamente chocada pela informação que acabara de ouvir, porém a moça possuía uma rápida capacidade de recuperação e afirmou:
— Pois, então, vamos nos apressar para preparar uma inesquecível ceia de natal.
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Blake encontrava-se sentado na cadeira central de uma longa mesa, que tinha sobre sua superfície uma quantidade exorbitante de comida, mais do que os sete convidados presentes seriam capazes de comer. Depois de sua chegada, ele havia sido bajulado durante infernais duas horas e seu humor não era dos melhores. Do lado esquerdo da mesa, havia cinco mulheres, todas concubinas dos filhos de Gutemberg, e a ex-duquesa, Luana; do lado direito, estava Draco Gutemberg e cinco assentos vazios destinados a seus filhos, Mihai, Octavian, Răzvan, Theodor e Eugen. Os convidados conversavam entre si, enquanto o hunter os encarava com o mais sombrio dos olhares. Quando uma das concubinas começou a exaltar a potência do falo de Mihai, Blake a interrompeu e, dirigindo-se a um dos criados que estava próximo, disse:
— Diga que ordeno que sirvam a ceia, por favor.
— Mas seus irmãos ainda não chegaram! — Exclamou Luana com indignação.
— Eles não são meus irmãos. — Declarou Blake sem pestanejar, porém sem alterar o tom de voz. — Até porque não possuem o mesmo sangue que eu. São tão bastardos quanto este que vos fala, não é mesmo, Luana?
O jovem de cabelos negros soltou uma risada cruel, enquanto os criados serviam os pratos dos convidados presentes. Outros empregados adentraram o recinto, sendo Dandara uma deles, trazendo cinco bandejas fechadas que foram depositadas ao longo da mesa, sem que seus conteúdos fossem revelados. Luana não gostou da atitude e ameaçou:
— Suas mãos irão cair se tirarem as tampas das bandejas?
— Nós não recebemos mais suas orfens, puta. — Respondeu a cozinheira com rispidez.
A ex-duquesa arregalou os olhos, espantada com o tom da criada e com o fato da mesma ter conhecimento da posse de Blake sobre o ducado. A mulher ruiva encarou seu marido em busca de alguma resposta ou sinal, porém o mesmo nem sequer ousou levantar os olhos de seu prato finalizado, temendo que a discussão tomasse proporções mais severas. Quando todos estavam devidamente servidos, Blake ordenou com uma palpável grosseria:
— Comam!
Os sete presentes, com exceção do hunter que não fora servido, começaram a comer os conteúdos de seus pratos em silêncio, levemente perturbados pela atmosfera misteriosamente violenta que pairava sobre o salão.
Após um tempo, quando todos estavam quase finalizando suas refeições, o ex-duque questionou:
— Você não comerá, Blake?
— Está uma delícia! — Declarou a concubina de Octavian, após ingerir o restante do purê de batata.
— Gostaria que meu majestoso Mihai estivesse aqui para desfrutar deste banquete... — Choramingou a concubina do primogênito dos Gutemberg, enquanto passava delicadamente o guardanapo sobre os lábios.
Uma pequena discussão entre as concubinas se iniciou acerca de quem entre os filhos de Luana deveria receber o apelido de majestoso, porém o hunter interrompeu-as dando uma forte pancada na mesa com os pés, o que fez todos se sobressaltarem. Um dos criados, a mando de Dandara, foi até a porta do salão e a fechou.
— Hoje é natal. — Declarou Blake com uma sádica satisfação, acomodando ainda mais as botas sobre a mesa. — Então, é claro que Mihai, Octavian, Răzvan, Theodor e Eugen estão aqui.
— Onde eles estão? — Questionou com animação a concubina de Răzvan, enquanto batia palmas.
Luana estava paralisada e seu rosto completamente pálido, tendo em vista que compreendera o significado das palavras de Blake. Draco arregalou os olhos e sentiu que a qualquer momento seu estômago expurgaria tudo o que havia sido ingerido. As concubinas não pareciam notar a perturbação do casal e continuavam a devanear acerca de seus respectivos parceiros.
— Senhorita Dandara, gostaria de falar o menu desta noite, por favor? — Pediu Blake com gentileza.
A cozinheira se aproximou do hunter e, assim que as mulheres ficaram em silêncio, começou:
— O prato que vocês acabaram fe comer era composto por…
Todavia, Draco debruçou o corpo sobre o braço de sua cadeira e vomitou, assustando as demais presentes. Blake fez um sinal para a cozinheira prosseguir.
— Era composto por um carneiro ao molho mafeira e por um purê fe batata temperafo com fiversas especiarias.
O ex-duque levantou rapidamente a cabeça, surpreso com as informações fornecidas. A palidez do rosto de Luana diminuiu. Dandara fez um gesto para que os criados se preparassem para abrir as bandejas.
— Nesta segunda parte fa ceia, teremos cinco assafos. — Os empregados levantaram as tampas e gritos de horror escaparam dos lábios das concubinas, enquanto Luana berrava e Draco voltava a vomitar. A cozinheira prosseguiu, anunciando os componentes do banquete de natal com tranquilidade: — A cabeça fe Mihai está recheafa com um pouco fos órgãos fe cafa um fe seus irmãos, tenfo em vista que é o mais velho. Já a cabeça fos femais estão recheafas com seus respectivos fígafos, corações e pulmões; tofos, obviamente, foram cuifafosamente triturafos. O arroz possui passas, globos oculares picafos e unhas fritas. A farofa agrifoce foi feita com estômago fesifratato, fefos ralafos e pefaços fe coxa que foram grelhafos. A salafa fe cabelos possui braços picafinhos e foi temperafa com bile e urina. Para finalizar, vinho fe sangue para vocês tomarem.
O surto era generalizado entre os sete presentes. Os sons dos gritos e vômitos não conseguiam superar as risadas de Blake, Dandara e dos criados e, para completar esta sinfonia, Diablair surgiu em cima do pequeno palco e, sentando-se sobre o banco do piano, passou a tocar as teclas mais graves do mesmo, enquanto cantarolava:
— Ascendite, Beelzebub... ¹
Um redemoinho negro surgiu do chão e, após um pentagrama vermelho reluzir, um demônio de aparência horrenda se revelou, espalhando seu cheiro pútrido por todo o local. A família Gutemberg dividia seu espanto aterrador entre os filhos que haviam sido esquartejados e cozinhados das mais diversas maneiras e entre o medo crescente da assustadora entidade que babava compulsivamente um miasma esverdeado. Vendo que a agitação dos convidados atingia seu ápice, Blake, que sentia as bochechas dormentes de tanto sorrir, ativou um encantamento para prendê-los em seus respectivos assentos. A seguir, Diablair ordenou a Belzebu:
— Infice eos gula tua ².
O demônio se aproximou da mesa e segurou o rosto pálido de feição desesperada de Luana com suas mãos gosmentas, apertando com força o maxilar da mesma para que ela abrisse a boca e engolisse uma mosca. Assim ele fez com cada um dos sete convidados que, após alguns instantes de silêncio, foram libertos do encantamento de Blake e movimentaram-se como animais sobre a mesa, ingerindo de modo primitivo as iguarias da ceia. A gula que Belzebu havia inserido em cada um os impedia de mastigar, o que os fazia apenas engolir o que colocavam em suas bocas. A concubina de Mihai, que tanto havia se gabado do falo do primogênito dos Gutemberg, caiu da mesa, pois, o membro do rapaz que outrora estava na boca do mesmo na bandeja, encontrava-se agora preso na garganta da jovem, o que causou-lhe um sufocamento e a fez padecer no chão.
Luana, Draco e as concubinas remanescentes derramavam lágrimas em demasia, enquanto gemidos engasgados escapavam de seus lábios imundos. Blake, Dandara e os criados soltavam gargalhadas embargadas de satisfação pela cena que se desenrolava. Diablair, ainda no piano, tomado pela mais insana empolgação, simplesmente passou a socar as teclas do instrumento, enquanto gritava:
— Esta é a doce sinfonia do massacre! Esta é a minha ode aos gulosos!
Blake retirou sua casaca e aproximou-se de Draco Gutemberg. O homem o encarou com os olhos arregalados de medo e, por mais que seu instinto dissesse para ele fugir, o ex-duque apenas se debruçou sobre a travessa da salada, lambendo e ingerindo os elementos da mesma. O jovem de cabelos negros segurou seu progenitor pelos cabelos e, com deprezo, ordenou:
— Coma!
Como apenas um animal seria capaz de fazer, Draco começou a comer o tecido da casaca de inverno de Blake. Quando o jovem hunter se virou, deparou-se com Dandara e Belzebu colocando sobre as cabeças das concubinas, as cabeças assadas dos filhos dos Gutemberg como se fossem máscaras. As jovens, tomadas pela gula, passaram a abocanhar toda a carne colocada sobre seus rostos. Blake caminhou até Luana, que havia acabado de vomitar. Ele a puxou pelos cabelos, jogando-a no chão com brutalidade e, agachando-se ao lado dela, disse com crueldade:
— Comida não foi feita para ser desperdiçada… Porcas como você deveriam compreender a magnitude de um banquete como este, portanto, coma o que acabou de vomitar.
A mulher chorosa arrastou seu corpo pelo chão como uma serpente e, como se nunca houvesse comido na vida, passou a engolir seu próprio vômito.
Em cima do palco, Diablair encontrava-se incendiado pela mais satisfatória insanidade e, com um forte golpe, destruiu o piano. Os demais criados que encontravam-se no local, embebidos pela atmosfera de sadismo lírico, juntaram-se no palco e passaram a dançar ao redor do instrumento destruído, enquanto o líder Infernal berrava a plenos pulmões para a família Gutemberg:
— Feliz natal, filhos da puta!