Da janela que a rachadura de concreto fazia, ela se esticou e se debruçou. Os braços, esverdeadas e macias folhas, formavam um apoio para a cabeça; o cabelo loiro e o chapéu branco faziam a loucura de mostrar que ali na secura, no sol e na rachadura nascia uma flor, delicada e fresca. Contrastante com o cinza, via-se olhando para o céu, voltada a ele. O sol parecia a chamar pelo nome, de forma serena, suave, tão doce quanto o mel que produziam as abelhas.
Margarida, era o que o sol dizia.
E, conforme chamava, ao caule que chamava de corpo respondia, se erguendo ao sol, embora pendendo como uma donzela debruçada sobre o parapeito da janela. Ainda que tivesse acabado de, enfim, desabrochar, alguém já devia ter pisado onde era sua casa pequenina, seu corpo sem medida. Logo o bom dia da estrela diurna tocava seus ouvidos, discretos, escondidos sob o cabelo, e a língua mexia-se dentro da boca, somente para auxiliar no esboço de um sorriso, e se esqueciam todas as tristezas, e o caule pendente.
- Bom dia!
E ela sentia, no resplandecer da alegria das primeiras horas da manhã, que finalmente a primavera lhe cumprimentava, e suas irmãs flores acenavam com o balançar do vento. Pétalas se abriam, folhas se tornavam brilhantes como cetim, refletindo as gotas do orvalho que encerrava seu turno, também sorrindo para o sol. Primavera. As irmãs rosas abriam suas pétalas, cacheados cabelos que pendiam, e se mantinham intactos, no ar! Viviam elas no jardim ao lado da calçada de concreto, decorando uma cerca oposta à margarida. A pequena, simples flor do campo cresceu em uma terra tão improvável, com o sol escaldante da rachadura e a irrigação as vezes suave, as vezes agressiva da chuva que vinha por vezes cumprimentá-la. Arqueada sobre o peitoril da rachadura, ela encarava o jardim. Rosas, crisântemos, Girassóis e bem-me-queres, mesmo a pequena arvore podada no jardim dava seu bom dia. E, diante do esplendor alheio, a margarida fazia-se senão se perguntar:
Como seria a primavera, se não houvesse outras flores?
Achava-se, ali, apagada pela beleza das outras flores, que tinham como adorno a grama verde, magnífica do jardim. As rosas, famosas pelo amor, cantavam sua canção apaixonada, encarando as pessoas que passavam pela rua. E, impressionados, os humanos comentavam ao passar:
“Oh, que belas rosas! O perfume dos jasmins chega tão próximo de mim, como se estivesse ao meu lado! Ah, primavera! Lindo jardim”
E a calçada que lhe servia de adorno mais parecia uma triste camisola, larga e sem brilho. Suas folhas a decoravam, mas, no olhar da pequena margarida - que se sentia destruída - parecia que suas folhas eram opacas, mal tocadas pelo orvalho noturno. E as rosas resplandeciam.
Observou a grama verde, bem aparada; os arbustos cortados em formatos exuberantes que transpareciam riqueza, classe, paixão. E, olhava ao seu redor, na rachadura de concreto que havia brotado, com sorte, no meio da calçada. Passavam as pessoas por ela e mal olhavam, mal viam sob seus pés a flor tão pequena a encará-los de volta. Os olhos entristecidos da pequena viam-se encharcados; não sabia se pelo orvalho que ainda restava, ou pelas lágrimas. Sem ser vista, como seria sua primavera? Fitou mais uma vez o jardim, que parecia ainda mais belo, com o brilho da água em seus olhos. As flores ali, cada uma chamava a atenção de um transeunte diferente. Uma senhora feliz cumprimentou os girassóis, uma donzela apaixonada debruçou-se sobre as rosas, um poeta de passagem sorriu para os jasmins, e fez um pequeno haikai, que ali mesmo recitou. Algumas pessoas riam-se, e a brisa fresca espalhava o aroma. Despercebida, a margarida tratou de encarar o céu, para soar menos triste.
As poucas nuvens que o cobriam pareciam singelas, viajantes sem destino. Cada uma se assemelhava a uma flor, delicada e fresca; juvenil como a estação. As pétalas pareciam fofas, acompanhadas tão devotamente pelas sépalas; eram uma. Tudo exalava beleza, paixão. Tudo era amor, e temor para a margarida.
Envolvida em seus próprios pensamentos, ela pouco notou a presença de um sapato em sua direção. Quando viu, tragicamente lembrou que flores não podiam se mover – com exceção das plantas carnívoras, mas aquelas eram belamente traiçoeiras – e ficou ali, esperando seu fim. Pisoteada por alguém tão maior e mais feroz que ela, se via em desamparo, quando um gritinho no horizonte apareceu. Uma menina, pequena como ela, agitada como um girassol, perfumada como um jasmim e rosada como a rosa, correu até o homem que quase a atingiu. Viu que o alto gigante sorriu para a menina, e indagou o motivo de ela tê-lo parado tão abruptamente. A moleca, com inocência, apontou para a margarida. Por trás das lentes do senhor, a flor via que ele encarou, tão costumeiro, como se já houvesse visto muitas iguais a ela.
Mas, curioso, ele indagou:
- Por que tão afobada, se é só uma margarida? Tem tantas como esta.
- Porque, papai, ela parece comigo!
Nesse instante, a menina se sentou ao seu lado. A flor, vendo nos olhos dela tanto amor quanto nunca imaginou que receberia, nada mais pode fazer além de abrir mais suas pétalas, esticar seus bracinhos de folha, e dançar balançando o caule com o vento que vinha. Nunca se viu na vida uma flor tão feliz e tão formosa quanto aquela margarida. A criança sorriu; e ela também.
Se fosse um sonho, pediria ao céu para nunca mais acordar. Se fosse delírio, naquela doce ilusão preferia ficar.
A menina se levantou e, singela como criança, pôs um palito fino ao lado de seu caule, de forma a sustentá-la, mesmo que de forma estabanada.
Estava bem. Sua essência era frágil, porém, como parte da primavera, coloria todos os olhos que a viam, com a pureza e simplicidade, junto com todas as flores, todos os sorrisos. Se agora estamos falando da menina ou da margarida, ninguém sabe; e o resto é história...