Em uma outra vida
6 de Janeiro
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 19/12/22 05:04
Gênero(s): Drama LGBT Reflexivo
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 5min a 7min
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Palavras: 876
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Capítulo Único Em uma outra vida

Karol, você está em algum lugar.

Por anos eu tive o seu contato em meu WhatsApp, ficava te observando mudar a foto de perfil e tinha certeza de que você ainda estava viva, hoje fui conferir de novo e seu número havia sumido, o pânico da culpa bateu forte na minha cara.

Como fui covarde de deixar você ir embora.

Como fui covarde de nunca ter falado com você de novo.

E agora, eu não te acho mais em lugar nenhum.

Em uma outra vida, minha vida teria sido mais divertida e emocionante se eu tivesse insistido em nossa amizade e no universo de coisas geniais que você me mergulhava todos os dias, mas agora não há mais vestígios seus em lugar nenhum.

Você me apresentou o feminismo, filmes que espancam a consciência, livros rasgam a realidade, você me ensinou a entender política e a explorar pensamentos perigosos e proibidos para aquele tempo, conversávamos sobre o universo, desafiávamos literalmente a filosofia de Deus e o mundo, e madrugávamos compartilhando músicas que tocavam a alma, sempre tagarelando sobre amores inatingíveis e a tristeza de existir neste mundo tão odioso.

Você me apresentou a maioria dos artistas e tópicos que eu amo hoje, e se você não me apresentou, foi a única a valorizar os que eu gostava na época. Sua amizade salvou minha vida.

Você foi a primeira a ler meus textos aqui da Academia, eu te mostrava os mais pornográficos possíveis e você adorava, lembro quando criamos a fanfic sobre os dois meninos mais insuportáveis da sala, e como você amava ler os textos do Diablair comigo.

Você dizia sempre "nunca pare de escrever", bom, aqui estou eu. Nunca parei, nunca parei de ser ruim nisso também, mas acho que é questão de opinião...

Karol, espero que você esteja bem.

Você era linda, toda grande e alta, com o cabelo preto e volumoso, olhos negros e profundos adornados por óculos grossos e quadrados... Tinha uma personalidade única, sem medo de bater de frente com ninguém, sempre gargalhando e falando tanta merda interessante.

E eu, pequena, medrosa, estranha, sempre me deixando levar por teorias da conspiração de pessoas que não eram minhas amigas de verdade, pessoas que tinham ciúmes da nossa amizade e queriam me afastar de você - conseguiram.

Karol, é triste olhar para trás e ver que eu fui enganada, naquele tempo eu jurava que a história era contrária. Que você é que estava brava comigo, que você é que me queria longe... Sendo que depois que você chegou na minha vida, comecei a me sentir mais eu e comecei a perceber como você era a menina mais inteligente e divertida que eu já conheci.

A vida dividiu nossos caminhos depois que sua mãe partiu, eu mudei de escola, comecei a encher a cara, para me esquecer das amizades antigas e fingir que não me importava mais com nada.

Algo me diz que você se vestiu de luto e nunca mais foi a mesma - espero que seja mentira.

Me lembro dos seus sonhos sobre ser uma grande cientista e explorar o universo, descobrir algo grandioso e ser amada e aceita pelo que é.

Espero que você tenha conseguido.

Eu ainda sonho com você.

Sonho que estamos em uma fazenda empoeirada, sentadas em cima de uma pilha de feno, dentro de um celeiro velho, e neste cenário, continuamos falando de coisas complexas, gigantes e belas.

Depois que eu fui embora, só procurei amigos e amores que tivessem algo que me fizesse lembrar de você.

Me desculpe por deixar o medo tomar conta e ter sido tão estranha, tão boba, tão infantil. Você precisava de ajuda em um momento difícil, mas eu estava muito imersa na dor da existência e na euforia do alcool para me lembrar de você.

Se eu tivesse continuado na mesma escola... Talvez não teria sofrido com um namoro terrível, talvez os próximos anos não teriam sido regados a pinga, rock and roll e destruição, talvez a gente tivesse entrado juntas na faculdade, talvez a gente tivesse xingado nossa família e ido viver juntas em um apê num local afastado, talvez a gente de fato, brigasse e não se falasse mais, talvez, talvez quem sabe, se eu estivesse lá...

Eu ainda me lembro daquela noite na sua casa, quando brincamos de esconde-esconde no escuro, foi a coisa mais divertida que eu tinha feito em anos... Mas minha cabeça ruim insistiu em achar coisas para eu ficar obssessiva e na defensiva. Me lembro também no dia seguinte na escola, todos nós bêbados de sono, com crise de riso, os outros tentando matar aula para dormir, eu e você conversando sobre o infinito.

Karol, espero que você esteja bem, por favor esteja bem, por favor tenha sobrevivido ao luto, por favor tenha sobrevivido ao Brasil, à homofobia, ao caos de ser mulher.

Karol, espero que você tenha achado uma namoradinha super linda e bacana, espero que sua famíla tenha aceitado vocês, espero que o Pietro já esteja grande e inteligente, espero te esbarrar algum dia no ônibus... Mas isso não vai acontecer, pois você sempre foi boa demais para essa cidade, você não se encaixa nesse cenário de gente odiosa e medrosa.

Você sempre mereceu mais.

Karol, espero que você esteja bem.

Karol, eu estou tentando.

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Notas de Rodapé

Queria que tivesse como achar alguém só pelo primeiro nome.

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