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Ele não fazia ideia do que estava a fazer. Ele nem devia estar ali. Naquele momento, ele devia estar no autocarro junto ao seu melhor amigo, para mais um dia irritante de aulas.
Mas não.
Assim que ele colocou o primeiro pé no degrau, uma raiva contida apoderou-se dele e o rapaz largou-se a correr pelo passeio abaixo, para longe do veículo.
Para longe do seu presente.
Ainda podia ouvir a voz abafada do moreno atrás de si. E sabia que quando chegasse a casa, um sermão esperava-o. Mas ele não queria saber. Ele precisava fazer aquilo.
Já faziam dois anos que tudo tinha mudado. Que eles tinham deixado de ser quem eram e que aquele pedaço de si tinha sido levado. Ele sabia bem que havia muitos preços que todos os quatro precisavam de pagar, para algum dia se poderem redimir por tudo o que estava atrás deles.
Mas ele nunca quis pagar aquele preço. Ele nunca quis que aquela extensão do seu ser fosse levada para tão longe. Ele precisava daquilo.
Porque aquilo era capaz de protegê-lo. A ele e aos amigos. Sempre que precisasse. Se tinha o seu Guardião? Claro que tinha. Mas Death Shark nunca seria tão preciso e eficaz como a firmeza de um golpe de uma bala de nove milímetros.
Ahh… ele ainda o podia sentir.
O frio do aço nas suas mãos. O cheiro acre, azedo e pungente da pólvora. E o gosto metálico que insistia em ficar no céu-da-boca, sempre que eco da bala ressoava nos seus ouvidos.
Ele ainda o podia sentir.
O medo de todos os cobardes que se baixavam ao ver cano gelado. O nervosismo nos seus olhares e a adrenalina que se apoderava de si ao os ouvir implorar. Só para ele disparar a arma e fazer a bala raspar cuidadosamente alguma parte deles.
Ele ainda o podia sentir.
A sensação de poder. O controlo sobre tantos seres alheios na palma das suas mãos. E como brincar com os seus destinos era apenas… divertido.
Ele nunca quis que se tornassem uns santos. Uns monótonos com trabalhos e… vidas. Nunca quis ver o seu líder fechado numa garagem, ou aquele fumante chato a fazer pizzas. E muito menos ver-se a si mesmo e ao melhor amigo trancados numa sala de aula.
Estava farto de tanta bondade! Farto de tanta normalidade e de tantas coisas banais à sua volta. Eles não eram normais, nunca o foram! Eles eram…
Será que ele ficaria chateado se eu voltasse a dizer o nome da nossa equipa?
O rapaz entrou na loja e o sangue ferveu só de observar o que estava à sua volta. Ele queria levá-las a todas. A sua mão aproximou-se de uma, talvez grande demais para si, mas ele deteve-se, quase ouvindo a voz do moreno ao seu lado.
Ele não devia…
Mas ele não estava a fazer aquilo só por si. Era pelos quatro. E, o rapaz tinha a certeza que, se dependesse do seu líder, acabariam por ser cinco.
Ele não devia…
Agarrou no objecto pesado e pôde sentir as memórias de uma vida inteira percorrer-lhe o corpo num frenesim. Estava tudo a voltar. Ele estava a voltar.
Ele não devia…
Mas o rapaz não queria saber mais. Pois, a sua consciência, naquele dia, estava mais fria que o aço.
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Fim