Jogo Cego
Paulo Santana
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 17/08/16 23:37
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 14min a 19min
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Livre para todos os públicos
Capítulo Único Jogo Cego

Finais de semana são curtos períodos felizes que quase todo mundo espera durante cinco dias. Eu era preto, pobre e estudante de uma universidade pública no Brasil. O que isso significava? Significava dizer que durante a semana era uma pessoa que se sentia especial que havia obtido uma grande conquista e no final de semana pertencia ao imenso grupo de pretos e pobres do resto do Brasil. Ninguém gosta de ser um entre a multidão. Eu não era diferente.

Cursava história. Afinal onde é que já se viu um estudante negro em cursos superiores de maior projeção social. Há, é verdade, alguns estudantes negros nas engenharias e medicina. Obviamente que não são regra dentro do sistema, mas sim resultado de esforços familiares descomunais ou de uma “sorte” promovida por adestramento facilmente comprado com volumosas somas de dinheiro. Enfim, esse não é objeto do nosso relato.

Era uma sexta feira. Os finais de semana na universidade começavam na quinta. Minhas oportunidades financeiras não permitiam esse tipo de aventura com frequência, mas nesse período específico me proporcionei essa falta de juízo. Lembro-me da cabeça doendo. Não sei ao certo como cheguei em casa de madrugada. Tenho a impressão que teve ligação com um terremoto ou as coisas balançando por conta da embriaguez. Acordei sem camisa. Vasculhei o quarto e não encontrei. Não era difícil perder as coisas dentro de casa, afinal nunca fui alguém organizado.

Acordei e fui ao R. U. (Restaurante Universitário) tomar o café da manhã. Muito cedo. Eram seis e meia da madrugada. Estava de conversa fiada com um amigo meu. Escutava suas lamentações. Eram as mesmas todos os dias

_ Bicho, não nasci para a pobreza. - ele afirmou.

_ Sei.

_ Lá em casa teríamos uma mesa cheia de frutas, café gourmet, vários tipos de pães...

_ Nunca vi você comer uma fruta. - retruquei.

_ Mas o importante é que sempre temos frutas à mesa.

_ Sim, claro. Faz todo sentido você reclamar da ausência de frutas.

_ E esse monte de pobre aqui?

_ Como assim pobre?

_ Todo mundo malvestido.

_ Não acho não. - respondi revoltado.

_ Lógico que não acha. Veio pra cá com a roupa que dormiu.

Sorri sem muita empolgação por conta de estar acostumado. Já eram dois anos escutando quase que diariamente a mesma ladainha. E respondi:

_ Verdade.

_ Que aconteceu aqui?

Nesse momento passaram logo à frente do restaurante duas viaturas da polícia.

_ Deve ser mais alguma batida procurando drogas. - seus olhos começaram a se animar em função dessa inusitada movimentação matinal.

_ Algum maconheirozinho desses aí.

_ Como se eles realmente fossem o problema.

_ Uai.

Mais rápido que as viaturas dos policiais passou o carro dos bombeiros. Não foi só uma mera olhada coletiva desta vez. Deu para perceber que as pessoas começaram a se retirar um pouco mais rápido que o normal. A curiosidade por algo mórbido sempre me deixa assustado. Polícia e bombeiros juntos poderia ser muita coisa.

_ Vamos lá ver o que é?

_ Pra quê?

_ Pra ver.

_ Levanta e vamos.

Não tinha algo muito urgente a fazer naquela manhã. Acompanhar esse desajustado pareceu um programa não tão ruim. Andamos alguns minutos meio perdidos e assim que encontramos com o primeiro segurança, que são os reais responsáveis pelo patrulhamento do campus, perguntamos o que havia acontecido. Ele, sem muita cerimônia, explicou que, aparentemente, acharam um corpo na lagoa próxima ao supermercado. Não queria muito ir ver. Não via motivo. Fui convencido pela teimosia.

Chegando lá eram quatro carros da vigilância (que não havíamos visto passar), as duas viaturas da polícia, além da dos bombeiros. Já passava das sete da manhã. O pessoal começava a chegar para trabalhar no supermercado e nas localidades próximas. Todo mundo que vinha de carro diminuía a velocidade ou parava e descia para ver do que se tratava. Juntavam-se a uma multidão na beirada da lagoa. Meu amigo tinha iniciativa. Passamos por todas as pessoas como se fossemos uns dos responsáveis pela coleta do corpo. O acompanhei por impulso. A situação me incomodou muito. Era uma jovem morena, com um vestido vermelho, a pele já meio rocha e vários anos pela frente. Ali sem nenhum suspiro de vida servindo de atração para uma multidão.

Tiraram o corpo da água e começaram a ensacolar algumas coisas que estavam nas proximidades. Copos descartáveis, garrafas de vodca, algumas miudezas que não dava pra ver o que era e, ao vasculhar a lama da margem, encontrou o que parecia ser um pano fino. O bombeiro o abriu. Dava para ver que era uma camisa. Chacoalhou a mesma dentro da água. Saiu mais um pouco de lama, não toda por conta da água turva. Um dos policiais trouxeram-lhe um balde de água limpa. Era uma camisa social de manga curta, verde clara com finas listras verde escuras. E, para minha surpresa, muito parecida com a que eu havia perdido.

_ Tenho de ir pra casa. - disse já bem assustado.

_ Eu também.

_ Não! - precisava de mais informações - Fica aí e vê se eles acham mais alguma coisa.

Tentei não parecer interessado demais quando disse isto. De qualquer forma não era anormal. Todo mundo havia ficado interessando com o assunto. Essas coisas infelizmente interessam. Ele concordou com a cabeça. Afastei-me sem muito alarde.

Parti em direção ao apartamento. Tinha que achar aquela camisa. Tentei de todas as formas lembrar do momento que a retirei. Cada centímetro de memória foi esquadrinhado. Nada! Lembrava de tudo até o momento em que comecei a beber cachaça em copos americanos cheios. Como cheguei em casa a pé? Não havia possibilidade de lembrar. Começaram a aparecer uns flashes de memória muito pouco confiáveis. Não tinha certeza se eram imaginação ou delírios alcoólicos.

Revirei tudo como se minha vida dependesse disso. Dependia de fato. Já eram quase oito horas. Em meu apartamento todos havíamos bebido na noite anterior. Ninguém estava gostando de escutar aquela barulheira pela manhã.

_ Que isso calouro? Quer morrer? - disse o veterano que dividia o quarto comigo.

_ Não, cara. Preciso resolver uma coisa e não encontro minha carteira.

_ Carteira?

_ Cheguei muito bêbado e não lembro onde deixei.

_ Não vou te ajudar. Só se for pra pular da janela. Aí te empurro.

_ Desculpa.

_ Desculpa não. Sai fora. -levantou-se da cama praguejando - Vai procurar essa sua camisa no inferno.

_ Tá bom. - disse eu resignado.

Uma das coisas mais irritantes da universidade pública são os falsos pobres. E o alojamento é cheio deles. Eles vêm de famílias relativamente abastadas que teriam a condição de pagar todas as contas e o aluguel de um apartamento, só que junto disso há uma capacidade muito eficiente em esconder ganhos e posses. Era o caso do meu amigo do café da manhã e dos meus “camaradas” com quem dividia o apartamento. Hipócritas que ficam seis anos na universidade para concluir cursos que oficialmente tinham quatro anos de duração. Se isso também não é corrupção não sei o que é.

Saí do quarto e procurei nos lugares que poderia ter deixado a camisa.: banheiro, sala, cozinha, lavanderia... Nada! Nenhum sinal de que eu havia estado nesses cômodos. Algumas pessoas congelam quando ficam nervosos. Eu ando. Saí sem rumo pelo campus. Respirava ofegante, minhas mãos formigavam, a visão ficara turva. O que podia acontecer? Quantas pessoas tinham uma camisa igual aquela? Quantas pessoas tinham um álibi? Quantas, como eu, não lembravam de parte considerável da noite anterior? Que assassino larga sua camisa no local de um crime? Eu seria esse tipo de assassino idiota? Alguém queria me incriminar? Quem? Por quê? Muita coisa na minha cabeça. Muita coisa! O que eu faço?

Perambulei até a hora do almoço. Encontrei com conhecidos e os cumprimentei apenas com um sorriso amarelo e um “oi”. Voltei ao R. U. para o almoço. Tudo parecia cada vez mais escuro desde o momento que vi minha camisa. Será a minha? Era um mundo preto e branco desde então. A comida sem gosto levava à boca apenas para passar o tempo. A dificuldade de respirar permanecia. O que fazer no resto do dia? Seria melhor fingir que nada aconteceu. Talvez nada tenha acontecido mesmo e seja apenas coincidência. Coincidências. Tenho muita coisa a fazer. Estudar. Posso estudar. De fato não deve mesmo ter sido nada. É possível que eu tenha perdido a camisa no meio do caminho e o assassino, ou a vítima, encontraram-na na rua, Assim ela foi parar lá. Não há motivo para preocupação.

Passei a tarde inteira sozinho estudando na biblioteca. Foi bom para me acalmar. Passei em casa para tomar banho. Consegui me manter longe do assunto assassinato. Passei novamente no R. U. para o jantar. Era cedo. Por volta de cinco e meia da tarde. A aula começa seis e meia. Na saída encontrei uma amiga.

_ Leu o texto?

_ Passei a tarde inteira lendo.

_ Dormi a tarde inteira. - respondeu ela em tom de humor.

_ Ouviu falar da moça que acharam morta na lagoa?

_ Estava tomando café aqui no R. U. Vi a movimentação e fui lá ver com o fulano. Tô meio baqueado com o que vi até agora.

_ Dei uma olhada nas fotos da internet. Até onde sei não sabem se foi assassinato ou suicídio.

_ Suicídio? - disse eu um pouco animado.

_ É. Pelas fotos que tiraram de celular e o que a polícia divulgou não dá pra ter certeza de nada.

_ Sei.

_ Então, que você me adianta do texto? Só pra não ficar boiando na aula. - ela mudando de assunto.

Fiquei até a hora da aula com minha amiga. Tentei explicar o texto. Era o que saia da minha boca, mas a cabeça voltava a girar pensando na moça morta. Me peguei em silêncio. Recebi um cutucão. Saímos do banco onde estávamos e nos dirigimos a nossa sala. No caminho encontrei outro amigo.

_ Cara, você bebeu demais ontem.

_ Não acho.

_ Bebeu sim. - insistiu ele.

_ E aí, rendeu alguma coisa aquela conversa sua ontem com a morena do vestido vermelho?

Parecia que uma corrente elétrica irradiava do centro para as extremidades de minha coluna. Tentei disfarçar a surpresa. Permaneci calado. Sorri timidamente como resposta e me dirigi ao meu acento. No fim das contas não aguentei nem quinze minutos de aula. Levantei e fui andar. Era o nervosismo tomando conta novamente. Nem lugar para ir tinha mais. Passo após passo fui me distanciando da sala de aula e atravessei a universidade. Andei tanto que cheguei ao centro. O nervosismo acabou me dando mais fome. Precisava de um cachorro quente. Sentei no banco da praça e comecei a comer. Um senhos de aproximadamente uns cinquenta e cinco, sessenta anos sentou-se do meu lado. Parecia respeitável: camisa social, sapatos bem lustrados e calça esporte fino.

_ Parece que está gostoso esse seu cachorro quente.

_ Sim. - Não gosto muito de dar atenção a desconhecidos. Em alguns dias nem a conhecidos.

_ Faz o que rapaz? Não é hora de você estar estudando?

_ Não, sou nativo. Trabalhei o dia todo. To fazendo um lanchinho antes de ir pra casa. - respondi mentindo compulsivamente.

_ Parece nativo mesmo. Mas essa mochila? - disse ele demonstrando certa curiosidade.

_ Faço supletivo. Às vezes tenho tempo durante o trabalho e dou uma lidinha. Parece que tudo hoje precisa de estudo. Acho que até o fim do ano termino o segundo grau.

_ Gosto de vir aqui também. Fico até bem tarde.

_ Fazendo o que? - resolvi rivalizar com sua curiosidade.

_ Nada de mais. Gosto muito de jogar xadrez. Com o tempo fiquei tão bom que não tinha mais oponentes a altura. - com voz monótona.

_ É mesmo? - levemente surpreso.

_ Todos. Depois passei a vir pra cá para observar as pessoas. Tentar adivinhar quem elas são.

_ Como assim?

_ Rapaz, olha pra essas pessoas a nosso redor. Olhe pra você mesmo, pra mim... Todo mundo usa suas roupas como um discurso pessoal.

_ Interessante.

_ Olhe pra mim? O que eu quero dizer com a forma de me comportar e com as roupas que visto?

_ Está bem-vestido. Sem muito luxo. Se porta com elegância. Soa falso. - arrisquei.

_ Você também. Apesar da cor da pele e de claramente não ter muito dinheiro você é sim um universitário. Fala muito bem para alguém que não completou o ensino médio. - explicou.

_ Mas e depois? Não arranjou mais ninguém para jogar xadrez? - disse tentando mudar o rumo do assunto.

_ Mudei de esporte.

_ E o que faz nesse esporte?

_ Então, paro aqui e observo as pessoas escolhendo uma ou duas para jogar.

_ E elas aceitam com facilidade?

_ Bem, elas não sabem que estão jogando.

_ Como assim? - tomei um gole do refrigerante. A conversa estava ficando interessante.

_ Ontem por exemplo, já havia observado durante muito tempo uma moça. Ela constantemente parecia triste. Tinha o costume de sair às vezes e bebia muito para esquecer a tristeza. Coisas da vida dela. - falou ele em tom de aula.

_ E foi interessante jogar com ela? - perguntei com aquele sorrisinho apertado querendo dar a entender um algum tipo de encontro “romântico” entre eles.

_ Não joguei com ela. Era uma oponente muito fácil.

_ Então porquê a observou?

_ Precisava dela para o jogo?

_ E o oponente?

_ Ele era promissor. Um universitário muito inteligente. Venceu uma série de barreiras sociais e econômicas para chegar onde chegou. É um jovem promissor.

Tudo continuava a se confundir cada vez mais. Dei mais um gole no refrigerante. Que jogo era esse?

_ E porquê você resolveu escolher esse rapaz?

_ Como disse, ele era promissor. Mas foi um fracasso. Talvez no futuro fosse melhor jogar com ele. Gostou do meu presente?

_ O que você colocou nele? - disse apontando para o copo de refrigerante.

_ Duas coisas: primeiro, não precisa se preocupar em saber o que foi que eu coloquei e; segundo, vai acordar amanhã sem lembrar de nada dessa conversa. Não vai ser preso. A polícia acha que foi um suicídio. Talvez jogue com você no futuro. Quem sabe eu também não escreva um conto pelo seu ponto de vista. Pelo meu seria uma história muito chata.

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