O som das teclas sob os dedos ágeis e articulados era apenas uma das variadas sonoridades naquela inquieta vizinhança. Fosse a inevitável imposição do gosto musical dos inquilinos ou o trânsito e sua insistente orquestra de buzinas, raro era ouvir o silêncio. Este, improvável de chegar-lhe aos ouvidos sobretudo quando decidia transcrever súbitas ideias em parágrafos. O almejado som era indiferente aos ponteiros do relógio. Para a arte da escrita, aquele apartamento barato e barulhento era inconveniente, embora seu bolso discordasse. Parou a digitação levando o indicador direito até seu segundo par de olhos. Tais lentes quadradas eram um verdadeiro bálsamo para um escritor amaldiçoado pela opacidade da miopia. Levou a mão esquerda aos cabelos grisalhos. Aproveitou o pequeno intervalo e levou o olhar para a luz azulada e artificial oriunda da tela do computador. Pôs-se a analisar o aglomerado de palavras que acabara de produzir.
Enquanto lia os primeiros versos, sua mente o levou à época da saudosa datilografia. O homem de quase meia idade retornou a sua longínqua infância no interior com as enérgicas brincadeiras dos amigos de rua, a leitura dos infanto-juvenis e claro, o bisbilhotar na sala de seu falecido pai. Em suas recordações, havia o severo homem de vasto vocabulário que fazia palavras difíceis criarem vida naquela máquina formidável que despertava a curiosidade dum menino ávido por histórias. Histórias... a sucessiva ordem de palavras que todos têm, embora não sejam necessariamente escritas. Pensou em suas obras, cada um de seus sonetos, poemas, contos e romances. Todos eram sobre terceiros. Ainda que alguns estivessem em primeira pessoa, o seu eu lírico não estava naquelas linhas. Questionou-se a prosseguir escrevendo de tal maneira. Pairava sobre ele a sensação de que passará o resto da vida sendo um pálido reflexo da luz alheia.
Parte dele estava impressa em cada verso, todavia, não por completo. Ainda sentia a ausência de algo. Suas combinações de letras permeavam do tangível ao abstrato, mas o que escreveria a seguir? Contos sobre seus amores não correspondidos? Suas obras exalavam um ar de tragédia e parte da culpa recaia sobre Shakespeare e Machado de Assis. O maior dos sentimentos lhe trouxe uma melancólica certeza: o amor, porém, é contagioso, com especialidade na solidão. Voltou as mãos ao teclado e fez aquele parágrafo desaparecer, fitando apenas o ponto de inserção que piscava solitário na imensa folha branca. Ponderou sobre o que fazer com a terrível falta do sentimento essencial para qualquer escritor. Onde estava a sua amada e radiante inspiração? Se dormisse um pouco, quem sabe se algum sonho poderia lhe trazer uma nova ideia. Mesmo um pesadelo serviria, pois sem a pequena morte de toda noite, como sobreviver à vida de cada dia?
No entanto, há tempos seu sono se resumia a uma eterna escuridão, só findando quando abria os olhos. A aurora da criatividade parecia uma luz distante e inalcançável. Se viu perdido em seus devaneios e pensou sobre o motivo de ter feito da escrita o seu ganha-pão. Dinheiro, reconhecimento, ou mesmo a necessidade de deixar um legado? Não. Tais coisas eram triviais, ainda que lhe incomodassem todo santo dia. Seu lapso de memória sobre a infância e suas leituras o fez reviver preciosos momentos. Lembrou-se das aventuras de Robison Crusoé, da viagem de Wendy até a Terra do Nunca, da toca onde vivia um hobbit, do rugido imponente de Aslam... Todas essas histórias guardadas no velho baú da mente, ambas com algo em comum: Inspiração. Foi por causa deste sentimento único, dessas viagens a mundos e personagens com histórias cativantes que um menino decidiu usar as letras e fazer outras pessoas sentirem o mesmo. E sem aviso, aquele som invadiu seus ouvidos, tirando-o dos devaneios. Silêncio. Talvez não em três partes como na Pousada Marco do Percurso, mas lá estava o som. E com ele, lhe veio a inspiração para escrever algo do seu verdadeiro eu lírico.